Política Pública de Assistência Social: Um lugar para o trabalho com homens autores de violência

David Tiago Cardoso y Adriano Beiras
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumen—A criação da Lei nº 11.340/2006, também conhecida como “Lei Maria da Penha”, procurou criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres no contexto brasileiro. Um dos mecanismos possíveis é a possibilidade de a Administração Pública ofertar espaços para que os homens autores de violência possam ser atendidos a fim de prevenir a reincidência de novas ações violentas. Contudo, ao não citar qual política pública será responsável pela criação destes espaços, deixa um vazio jurídico que precisa ser preenchido. Assim, por meio da discussão sobre os avanços que a referida lei provocou na elaboração de políticas públicas no contexto brasileiro, apresentamos a Assistência Social, política pública de proteção social não-contributiva, como um lugar possível para a elaboração de ações para estes homens. Aqui resgatamos estratégias que vêm sendo utilizadas tanto no Brasil quanto na América Latina que podem dar pistas de como torná-las referências potentes para a referida política pública. Para fundamentar a discussão utilizamos duas perspectivas epistemológicas, as teorias feministas e o Construcionismo Social, por possibilitar a ampliação do olhar sobre a temática sem a pretensão de encerrá-la, mas sim realizar o apontamento de novos caminhos

Palabras clave—Política Pública, Assistência Social, Violência de Gênero

Public Policy of Social Assistance: A place to work with men who perpetrate violence

Abstract—The creation of Law 11,340/2006, also known as “Lei Maria da Penha”, sought to create mechanisms to curb domestic and family violence against women at Brazilian context. One of the possible mechanisms is the possibility for the Public Administration to offer spaces so that men who perpetrate violence can be cared for in order to prevent the recurrence of new violent actions. However, by not citing which public policy will be responsible for creating these spaces, it leaves a legal void that needs to be filled. Thus, through the discussion of the advances that this law provoked in the elaboration of public policies in the Brazilian context, we present the Social Assistance, public policy of non-contributory social protection, as a possible place for the elaboration of actions for these men. Here we retrieve strategies that are being used both in Brazil and in Latin America that can give clues on how to make them powerful references to the aforementioned public policy. To support the discussion, we use two epistemological perspectives, feminist theories and Social Constructionism, because it allows us to widen our eyes on the subject without pretending to close it, but rather to point out new paths

Keywords—Public Policy, Social assistance, Gender-based violence.

Introdução

O Brasil, em seu processo de reconstrução democrática pós-ditadura militar, em 1988 conseguiu realizar, com a participação de inúmeros atores sociais, a construção de uma carta magna que atendesse as demandas sociais da população sendo apelidada de “Constituição Cidadã”. É por meio desta atenção às demandas que a previdência, a saúde e a assistência social são (re) organizadas a fim de constituírem um sistema de seguridade social no país (Boschetti, 2006).

Enquanto as constituições anteriores já reconheciam a relevância social da previdência, que no Brasil, ainda hoje, tem significado examinar um seguro social ao contribuinte-beneficiário aos quais presta assistência sem desconsiderar os patrões e o próprio Estado, a atual carta, reconhece a Saúde como um direito de todos e para todo o território nacional e a Assistência Social passa a ser reconhecida como uma política pública de Estado, capaz de formular com objetividade o conteúdo dos direitos dos cidadãos (Sposati, 2009).

Ainda que haja críticas por ser considerado um sistema híbrido, como trata Boschetti (2006), por conjugar direitos que dependem do trabalho (previdência) com direitos universais (saúde) e direitos seletivos (assistência social), possui caráter inovador por possibilitar um sistema de proteção social. (Sposati, 2009:15) ressalta ainda que, “todavia, o que os constituintes aprovaram foi mais um vir a ser, mais uma intuição para o futuro do que uma racionalidade de então --e até mesmo da atual-- oferta da assistência social”. E é sobre estes dois aspectos, o de inovação na proteção social às cidadãs e os cidadãos e ao caráter de “vir a ser” que este trabalho se alicerça, tendo como foco a Assistência Social e seu campo de atuação.

A Assistência Social, como supramencionado, por meio da sua seletividade, tem como caráter o atendimento àquela população que dela necessitar, sendo que define quem merece tal proteção: a família, a maternidade, a infância, a adolescência e a velhice, como expresso no artigo 203, inciso I, (Brasil, 1988). Este enquadramento reflete ainda hoje em um modelo familista de atendimento (Mioto, 2008), onde a família ora é reconhecida como sujeito de direitos e merecedora de proteção social, ora é tomada como agente de proteção social, que deve prover assistência e cuidado de seus membros, o que possibilita ações que as normatizam e as disciplinam em papeis sociais hegemônicos e comportamentos esperados (Teixeira, 2015).

De certa forma, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (Brasil, 2004) busca resolver esta contradição ao possibilitar a ampliação do enquadramento de quem seriam suas usuárias e seus usuários, identificando como aqueles e aquelas que se encontram em situações de vulnerabilidade e risco social construídos por meio da fragilidade dos vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade, ou seja, sujeitos vulnerabilizados pela pobreza, mas também, por violações de direitos, entre as principais estão as violências física, psicológica e sexual, também podendo ser definidas como vulnerabilidades relacionais (Brasil, 2017).

Desta forma, as usuárias e os usuários que utilizam os serviços da Assistência Social são atendidas/os pela rede socioassistencial, organizada em níveis de proteção social, por meio de serviços, conforme organização da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (CNAS, 2009). As proteções sociais, conforme a referida tipificação, são: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, esta última dividida em média complexidade e alta complexidade.

A Proteção Social Básica tem como objetivos a prevenção de situações de risco por meio de ações e estratégias que busquem o desenvolvimento de potencialidades e aquisições, bem como o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. (Brasil2, 006b). É nesta proteção que encontramos um dos serviços que discutiremos aqui, o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), com “[...] a finalidade de fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a ruptura dos seus vínculos, promover seu acesso e usufruto de direitos e contribuir na melhoria de sua qualidade de vida” CNAS, 2009: 06).

A Proteção Social Especial de Média Complexidade, por sua vez, tem como objetivo “[...] contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos” (Brasil, 2011). O Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), outro ao qual temos interesse em discutir, encontra-se nesta proteção, e presta apoio, orientações e acompanhamento dos sujeitos em situação de violação de direitos, em especial, a violência, para “[...] a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para o fortalecimento da função protetiva das famílias diante do conjunto de condições que as vulnerabilizam e/ou as submetem a situações de risco pessoal e social.” (CNAS, 2009: 19). Por fim, a Proteção Social Especial de Alta Complexidade, que possui o mesmo objetivo da Média Complexidade, com a diferença que, nesta, os sujeitos estão de alguma forma afastados do convívio familiar, encontrando-se em acolhimentos ou serviços similares (CNAS, 2009), contudo, ainda que seja possível, não contemplaremos a discussão destes.

Esta organização por níveis de proteções permite as pessoas o atendimento de suas demandas familiares, comunitárias e sociais, entre as quais encontram-se as violências vivenciadas por mulheres no âmbito doméstico, tendo como autoria destas violências seus parceiros, definidos aqui como homens autores de violência. Desta forma, cabe destacar que, paralelo a efetivação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, o país estava discutindo a criação de uma legislação que garantisse a proteção de mulheres vítimas de violência, chegando a conclusão da Lei nº 11.340, de 2006, também conhecida pelo nome Lei Maria da Penha, que entre outras coisas, “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher [...]” (Brasil2, 006a).

Segundo Beiras (2012) esta lei altera o Código Penal Brasileiro ao triplicar a pena para as agressões contra as mulheres e aumentando os mecanismos de proteção para com elas. A lei possibilitou os seguintes aspectos: a) aumento do custo da pena para o autor da violência; b) aumento do empoderamento e das condições de segurança para as vítimas; c) aperfeiçoou os mecanismos jurisdicionais (Cerqueira, 2015). Destacando o lugar do homem e do masculino nesta Lei, Banin (2016) discutem que o mesmo está ligado diretamente ao viés punitivo, utilizando-se do termo agressor e relacionado às medidas coercitivas. Contudo, apesar deste teor de punição, é a primeira lei que traz menção direta ao trabalho reflexivo e educativo com os homens.

Com isso, iluminamos o objetivo desse artigo, que trata de problematizar a Assistência Social como possibilidade de ser um campo de trabalho possível com as masculinidades, em especial, com a proposta de ações e serviços à homens autores de violência, como os grupos que a Lei Maria da Penha propõe, por exemplo. Para tanto, utilizamos experiências brasileiras e latinas que podem servir para a construção social desta demanda. Compreendemos que a demanda se constrói a partir da oferta (Baremblitt, 1992 citado por Franco, 2005) e resultante de processos de negociação, mediados pela cultura, e que acontece por meio da interlocução dos atores representantes de diversos saberes e experiências (Camargo, 2005).

Destaca-se, portanto, que o SUAS é um campo de atuação reconhecidamente marcado pela construção de uma política pública de mulheres para mulheres. Esta condição revela uma importante arena de debate sobre as dificuldades e facilidades que, tanto as trabalhadoras quanto os usuários autores de violência, encontram diariamente. Faz parte das narrativas das trabalhadoras o problema encontrado em fazer os homens, sejam quais forem, aderirem aos serviços socioassistenciais. Parte do argumento passa pela condição de grande parte deste público performar uma masculinidade que não acessa as políticas públicas por ter o seu tempo dedicado ao trabalho e as atividades distantes da vida doméstica (Cardoso, 2018). Assim, na inexistência deste público, as ações das trabalhadoras estão focadas sempre nas mulheres, que em sua maioria, são mães e dedicadas as tarefas do lar. Neste cenário, questionamos se não há homens para que as ações dos serviços sejam ofertadas ou não há oferta de ações específicas às demandas de homens para que estes acessem os serviços e reflitam sobre suas condições, em especial, a autoria de violência contra suas parceiras.

Como Ramirez (2017), compreendemos que uma das maneiras de inserir e acelerar a participação de homens enquanto corresponsáveis ao enfrentamento à violência de gênero é por meio de adoção de políticas públicas, no caso brasileiro, a Assistência Social. Neste sentido, para que os serviços socioassistenciais possam ser aprofundados neste artigo como espaços de masculinidades, utilizaremos as orientações técnicas que dão as diretrizes para a condução dos trabalhos pelas equipes de referência, compostas, em sua maioria, por profissionais da Psicologia e do Serviço Social: Orientações Técnicas sobre o PAIF - Volume 1 (Brasil2, 012a), Orientações Técnicas sobre o PAIF - Volume 2 (Brasil2, 012b) e Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS (Brasil, 2011).

A partir desta reflexão sobre as ações e estratégias que as/os trabalhadoras/es utilizam no cotidiano do trabalho social com as usuárias e com os usuários, aliadas ao campo brevemente contextualizado acima, reafirmamos que nossas discussões buscarão contribuir para que a destacada política pública seja construída como um lugar para o trabalho com homens autores de violência e, sempre que possível, faremos o tensionamento para que os serviços sejam ofertados a todos os homens.

PAIF e PAEFI: Prevenção, Proteção e Proação

Considerado a porta de entrada da rede socioassistencial, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é o equipamento responsável por ofertar o Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF), que dever prever por meio de ações de caráter preventivo, protetivo e proativo, o desenvolvimento de potencialidades e aquisições das famílias e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, não devendo possuir caráter terapêutico (CNAS, 2009).

Em 2012, o então chamado Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), publicou dois documentos com orientações técnicas que devem servir como norte para as citadas ações preventivas, protetivas e proativas. O primeiro documento nomeado “Orientações Técnicas sobre o PAIF - Volume 1 - O Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF, segundo a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais” (Brasil2, 012a), traz as definições do que seriam as referidas ações.

A ação preventiva tem o objetivo a prevenção de quaisquer ocorrências que interfiram no exercício dos direitos de cidadania, requerendo intervenções orientadas a evitar a ocorrência ou o agravamento de situações de vulnerabilidade e risco social, que impedem o acesso da população aos seus direitos. Na ação protetiva as intervenções visam amparar, apoiar, auxiliar, resguardar, defender o acesso das famílias e seus membros aos seus direitos, enquanto que na ação proativa a intenção é antecipar ações e intervenções que podem ser vivenciadas pelas famílias ou território, mas que ainda não chegaram como demanda (Brasil2, 012a).

Desta forma, fica evidente que as ações têm foco nas famílias e nas relações desta com a comunidade. Assim, conforme o Volume 1 das orientações, o PAIF deve atender todas as famílias em situação de vulnerabilidade social do território que atende. Contudo, algumas situações demandam um olhar atento, entre as quais citamos duas: Famílias com episódios pregressos de violência entre seus membros adultos; Famílias com episódios pregressos de violência contra criança/adolescente (abuso sexual, violência física ou violência psicológica) (Brasil2, 012a: 42).

Mas não basta falar em modalidades de ação que o PAIF deve propor às famílias que temos citado até então, é preciso avançar com o questionamento: Como essas ações são colocadas em práticas no dia a dia do serviço? Este questionamento surge em nosso horizonte porque nos parece muito vago falar de ações sem falar que ações são essas. Justamente querendo dar respostas sobre essas ações que o MDS lançou o volume 2 das Orientações Técnicas sobre o PAIF, que tem como proposta o “Trabalho Social com Famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família".

O conceito de trabalho social com famílias no âmbito do SUAS, em especial no PAIF, é definido da seguinte forma:

Conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos éticos, conhecimento teórico-metodológico e técnico-operativo, com a finalidade de contribuir para a convivência, reconhecimento de direitos e possibilidades de intervenção na vida social de um conjunto de pessoas, unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade – que se constitui em um espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, com o objetivo de proteger seus direitos, apoiá-las no desempenho da sua função de proteção e socialização de seus membros, bem como assegurar o convívio familiar e comunitário, a partir do reconhecimento do papel do Estado na proteção às famílias e aos seus membros mais vulneráveis.
(Brasil2, 012b: 12)Grifos nossos.

Quando as ações se transformam em um conjunto de procedimentos fundamentados no conhecimento teórico-metodológico, buscando reconhecer direitos e possibilidades de construir relações sociais, no apoio às funções de proteção e socialização das famílias, fica mais claro pensar estratégias de atendimento, já previamente definidas pelo volume 2 como: “Acolhida; Oficinas com Famílias; Ações Comunitárias; Ações Particularizadas; Encaminhamentos" (Brasil2, 012b: 14). Destas quatro ações, destacaremos duas, por serem pensadas como estratégias de atendimentos coletivos, são elas: Oficinas com Famílias e Ações Comunitárias.

As oficinas com famílias são encontros previamente organizados, com objetivos a serem atingidos a curto prazo por um conjunto de famílias, podendo ser toda família ou algum de seus representantes, sendo conduzidas por profissionais de nível superior que trabalham no CRAS. Entre os objetivos encontra-se a reflexão sobre temas de interesse da família e/ou do território que contribuam com o fortalecimento do vínculo comunitário, “[...] do acesso a direitos, o protagonismo, a participação social e a prevenção de riscos" (Brasil2, 012b: 24). De modo focalizado na família, um dos principais objetivos é “Romper com preconceitos, estereótipos e formas violentas de interação e repensar os papéis sociais no âmbito da família" (Brasil2, 012b: 25).

Paralelo as oficinas encontram-se as Ações Comunitárias, que buscam um olhar ampliado às relações no território de atendimento, com o objetivo de promover junto com as famílias a comunicação comunitária, para que, assim, construam formas de mobilização e protagonismo comunitário, como estímulo à participação cidadã das usuárias e dos usuários. Entre essas ações, destacam-se as palestras, campanhas e eventos comunitários, todas sempre organizadas para e com as famílias atendidas no PAIF, mas também para as tantas outras que ainda não acessaram o serviço (Brasil2, 012b).

É notável as inúmeras possibilidades de ações coletivas na Proteção Social Básica através do CRAS, por meio do PAIF de forma a, como já foi explanado anteriormente, mas queremos reforçar, garantir que acessem e tenham seus direitos garantidos e que possam, de igual maneira, construir na coletividade novos projetos de direitos. Contudo, quando a Proteção Social Básica não consegue atingir seus objetivos, seja por qualquer barreira que não buscaremos investigar aqui, as famílias precisam ter um atendimento especializado com foco em enfrentar e superar violações de direitos que fragilizam ainda mais a autonomia e o protagonismo destas famílias já vulnerabilizadas, é nesse contexto que a Proteção Social Especial encontra espaço.

Como já salientamos, nosso interesse nesse artigo é explorar também a Proteção Social Especial com foco específico no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), contudo, este serviço não possui um documento específico tal como o PAIF, mas é possível encontrá-lo no Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) (Brasil, 2011), que trata de como o CREAS deve atuar junto as suas usuárias e seus usuários, abordando, então, em alguns trechos, o PAEFI.

Conforme as Orientações Técnicas (Brasil, 2011) as situações que chegam ao CREAS são complexas por envolver violações de direitos, permeadas por tensões familiares e comunitárias, que pode estar acarretando fragilização dos vínculos, exigindo intervenções igualmente complexas, fundamentadas em conhecimentos e habilidades técnicas por parte da equipe. Ressaltam que:

As singularidades de cada situação deverão, inclusive, orientar a decisão conjunta, com cada família/indivíduo, das metodologias a serem utilizadas no trabalho social especializado, para a adoção das estratégias mais adequadas em cada caso, tendo em vista a construção de novas possibilidades de interação, projetos de vida e superação das situações vivenciadas.
(Brasil, 2011: 27).

Desta forma, o trabalho social ao ser especializado exige que a equipe de profissionais seja interdisciplinar, com domínio teórico-metodológica, agregando os mais diversos instrumentos técnicos e operativos, com bases teóricos-metodológicas e ético-políticas que contribuam para um posicionamento crítico frente à realidade social. Assim, tal como no PAIF, o PAEFI/CREAS possui centralidade na família visando o fortalecimento da função protetora de forma a prevenir e mediar as condições que irão superar os agravamentos de processos que geram ou acentuam as situações de violência e quaisquer outras que colocam a família ou algum de seus membros em situação de risco pessoal e social (Brasil, 2011).

Conforme as Orientações Técnicas do CREAS (Brasil, 2011), entre as competências dos serviços que oferta estão o planejamento de ações tendo em vista o atendimento qualificado à população, a coordenação de trabalhos em equipe assegurando a interdisciplinaridade e, a terceira competência, propiciar acompanhamento continuado as ações desenvolvidas permitindo reflexão conjunta para identificação de ajustes e aprimoramentos necessários. Essas competências devem estar articuladas para atingir os objetivos: o já citado fortalecimento da função protetiva da família; a construção de possibilidades de mudanças em padrões violentos de relacionamentos no âmbito familiar e comunitário; potencialização dos recursos para superar situações de violação de direitos e reconstrução de relacionamentos, quando for o caso; empoderamento e autonomia; protagonismo e participação social; acesso a direitos socioassistenciais; prevenção a institucionalização.

As ações coletivas são tão importantes no PAIF quanto no PAEFI, embora o segundo tenha um foco maior na violação de direitos, ou, em outras palavras, tem ações especializadas, enquanto que o primeiro as ações são na prevenção. Justamente por isso, que os profissionais que atuam no PAEFI devem conhecer algumas legislações e normativas, que aqui destacamos: Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil; Lei Maria da Penha; Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Brasil, 2011: 101).

Tendo isso em nosso horizonte, podemos resgatar nosso questionamento: poderia ser a Assistência Social um espaço possível para o trabalho com homens autores de violência? Parece evidente que sim, conforme buscamos trazer com as orientações técnicas, contudo, não basta dar uma resposta afirmativa e nos despedirmos. Se é possível, como é que podemos criar ações que sejam eficazes para o atendimento com esses homens? É preciso esperar que cheguem ao CREAS ou podemos propor ações já na Proteção Social Básica?

SUAS: Ações eficazes, possíveis e potencialmente possíveis

Ao pensarmos na Assistência Social como um lugar possível para o trabalho com homens autores de violência, seja na Proteção Social Básica ou na Proteção Social Especial de Média Complexidade, precisamos pensar se as estratégias e intervenções propostas são eficazes, promissoras ou potencialmente promissoras (Flood, 2011). Flood (2011) ressalta que as intervenções eficazes são aquelas têm fundamentação teórica, apresentam evidências de implantação bem como evidência da eficácia. As promissoras possuem fundamentação teórica, foram implantadas, mas ainda não possuem evidências de eficácia, enquanto que as potencialmente promissoras, da mesma forma apresentam fundamentação teórica, contudo essa fundamentação ainda não foi avaliada.

É ponto comum nas três categorias de intervenção a necessidade de haver fundamentação teórica para que o trabalho possa acontecer. Propomos, então, trazer as Teorias Feministas que conceituam Gênero e Masculinidade, isso porque, como expressam (Beiras, 2014) e Beiras (2016) a utilização destas, em especial a Teoria Feminista Pós-estruturalista, abre a possibilidade de olhar para a diversidade transcendendo as dicotomias, reducionismos, essencializações e naturalizações. Quando tratamos especificamente da violência masculina, as investigações e debates apresentam um grande avanço justamente por consequência das propostas dos múltiplos Feminismos e do Movimento de Mulheres (Aguayo, 2016).

Acreditamos que não é possível trabalhar com homens autores de violência se não compreendermos as relações de gênero e como este gênero é construído. Butler (2003) afirma que Gênero é um fenômeno inconstante e contextual por ser um ponto de convergência entre conjuntos de relações culturais e historicamente convergentes, estando sempre instável, ou seja, sempre em construção e em desconstrução, em outras palavras, Butler compreende que o Gênero é uma categoria vazia, que irá sendo preenchida por estas relações convergentes.

Assim, Nogueira (2001), compartilhando deste argumento, compreende que Gênero não é algo ligado a uma identidade individual que possibilita dizer quem é homem, quem é mulher, mas sim desenvolve-se mediante a discursos organizados em um sistema de significados disponíveis aos indivíduos de forma a darem sentido às suas posições, o que historicamente é reconhecido como respostas para a feminilidade e para a masculinidade.

A própria masculinidade deve passar pela compreensão do conceito de Gênero, sendo ela mesma, desta forma, uma categoria vazia. Connell (2013) e Messerschmidt confirmam essa concepção ao tratar a masculinidade como uma entidade que não é fixa, não estando encarnada no corpo masculino ou próprio da personalidade dos sujeitos, sendo assim, “as masculinidades são configurações práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em cenário social particular” (Connell, 2013: 250).

Para Kimmel (2008), o feminismo possibilitou, ainda o faz, que o conceito de masculinidade assuma dois aspectos importantes, sendo o primeiro deles a visibilidade da própria mulher e, da mesma forma, a visibilidade do Gênero, permitindo compreendê-lo como um sistema de classificação que não apenas estabelece que as mulheres se tornem femininas e os homens masculinos, mas também os enquadre dentro de relações de poder que produzem desigualdade. Outro aspecto abordado por Kimmel (2008) foca na Diversidade, permitindo ver como os homens, dependendo de situações específicas, definem a masculinidade de forma diferente.

Havendo compreendido os conceitos de Gênero e de Masculinidade, Beiras (2014), ainda alertam sobre a necessidade de se estar atento às margens do discurso hegemônico, do que está socialmente legitimado enquanto verdade. Assim, acreditamos que outras categorias são igualmente importantes para o trabalho com homens autores de violência e também para o SUAS: Saber localizado; experiência; interseccionalidade.

Quando tratamos de “saberes localizados” estamos compreendendo a partir de Haraway (1995), que argumenta a favor de políticas e epistemologias de alocação, posicionamento e situação que pretendem não responder a universalização, mas sim a parcialidade, sendo esta a condição para a produção do conhecimento. Assim, “São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo" (Haraway, 1995: 30). Na Assistência Social, como um todo, não apenas com o trabalho em contextos de violência, requer olhar aquela comunidade, aquela família, aquele sujeito, a partir dele e não cair na armadilha de afirmar que todas as comunidades, famílias e sujeitos são daquela forma, ou ainda, de buscar enquadrá-los em uma teoria que explique a tudo e a todos como iguais.

Este saber localizado, portanto, pode ser construído a partir de outra categoria, a Experiência. Para Scott (1998) é por meio da experiência que os sujeitos podem se tornar visíveis, pois é esta experiência que produz o sujeito enquanto história encenada por meio da linguagem, da qualidade produtiva do discurso, em outras palavras, quando os sujeitos falam de suas experiências estão falando de suas histórias e do modo como foram sendo construídos enquanto sujeitos. Isso não significa eximir de responsabilidades os homens autores de violência, mas a partir do momento em que tornam a experiência visível, tem a possibilidade de questionar, refletir e se permitirem a novas experiências, desta forma, acreditamos que a Experiência assume um viés de ação política, possibilitando as transformações necessárias para a igualdade a partir da diversidade (Scott, 2005).

A Interseccionalidade é outra categoria importante, por também levar em consideração o saber localizado e a experiência, pois, para Nogueira (2013), ao se falar de interseccionalidade precisamos estar atentos “às especificidades da data, do local, das histórias e das localizações” (233). Desta forma, ao falar de interseccionalidade estamos falando de gênero, sexo, raça, etnia, classe social, religião e demais categorias que juntas possibilitam ou impossibilitam o acesso a privilégios socialmente construídos, e assim, como a injustiça e a desigualdade social ocorrem (Crenshaw, 1989). Ressaltamos que essas categorias se relacionam de modo a transcender uma identidade somatória, acumulativa (homem+branco+classe média...), mas sim, uma identidade que é multiplicativa (homem x branco x classe média) (Nogueira, 2013).

Consideramos tais fundamentos e conceitos importantes para dar sustentação as experiências que traremos a seguir, contudo, queremos destacar que os mesmos estão abertos para reflexões, por se tratarem de um conhecimento localizado, parcial e contingente (Butler, 1998). As revisões podem acontecer na prática, no cotidiano de trabalho, no exercício ético do trabalho social com as famílias e sujeitos vulnerabilizados pelos contextos em que constroem suas relações.

Experiências brasileiras e latinas

Para destacar as experiências brasileiras e latinas que podem servir de inspiração na construção da Assistência Social como campo de atuação com homens autores de violência, seguiremos com Flood (2011) para localizarmos alguns aspectos que consideramos importante para o trabalho com a prevenção à violência contra as mulheres na Proteção Social Básica, trazendo a discussão o “Espectro da Prevenção”, que autor divide em seis níveis de ações. O primeiro nível é chamado de “Fortalecimento do conhecimento e das habilidades individuais”, sendo a menor e mais localizada forma de prevenir e/ou evitar a violência contra mulheres. O autor ressalta que os profissionais devem possibilitar que meninos, adolescentes e jovens reflitam sobre a violência e possam também buscar engajar seus pais na luta contra a violência.

O manual “Educação para a Ação -- homens pelo fim da violência contra a mulher” desenvolvido por Lima (2007) pode ser considerado uma experiência que contempla este nível. É uma produção feita pelos esforços em conjunto do Instituto Papai, White Ribbon Campaign e Promundo, com a colaboração do Instituto Noos, Pró-mulher: Família e Cidadania, Ecos: Comunicação em sexualidade e do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (Gema-UFPE).

Por meio de um conjunto de estratégias que visam promover a Campanha Laço Branco, o objetivo do trabalho passa pela sensibilização, envolvimento e mobilização de homens jovens e adultos no engajamento pelo fim da violência contra mulher, onde estes homens adotem maneiras para resolver conflitos que não a violência (Lima, 2007). O trabalho em grupo é organizado pela execução de dezesseis oficinas que inicia tratando das construções de homem e mulher, passando pelas questões relativas à violência e chegando na definição de um plano de ação para colocar em prática a referida campanha.

Na mesma direção, no Uruguai, encontramos o manual “Prevención de la violencia sexual con varones. Manual para el trabajo grupal con adolescentes y jóvenes” escrito e desenvolvido por Aguayo (2015), do Centro de Estudios sobre Masculinidades y Género. Através de 26 atividades, a proposta do manual é ser uma ferramenta que possibilita às pessoas com interesse em facilitar grupos reflexivos com adolescentes e jovens construir uma metodologia de trabalho em torno de temas fundamentais para promover a equidade de gênero e a superação da violência de gênero.

No nível 02, chamado de “Promoção a Educação Comunitária”, Flood (2011) agrega quatro ações: Programas e Educacionais Face-a-face; Comunicação e Marketing Social; Campanhas sobre “Normas Sociais” e “Intervenções Espectadoras”; outras estratégias de mídias. A primeira ação envolve grupos de crianças, adolescentes e jovens adultos, todos homens, com interesse de refletir sobre a violência e como mudar as atitudes frente a ela, tendo como maior efetividade, quando homens não-violentos assumem o papel de liderança desses grupos. A segunda ação está ligada as campanhas midiáticas e locais para o enfrentamento da violência contra mulheres, seja por cartazes, panfletos, filmes e outras estratégias.

As campanhas sobre “normas sociais" buscam reconhecer e preencher as lacunas que existem entre os homens causadas pelas normas sexistas de apoio a violência, enquanto que nas “Intervenções Espectadoras" a estratégia é envolver toda a comunidade enquanto responsável pela violência e, da mesma forma, responsável pela superação desta. Exemplo desta última é a campanha “Cuenta tres: tú, ella, tu familia. Saca lo mejor de ti. Detén la violencia”, lançada em 2007 na Venezuela, promovida pelo Sistema das Nações Unidas e a Fundación Banco Fondo Común, com apoio da Inamujer, por meio audiovisual, convida aos homens do país a serem aliados no combate a violência contra mulheres e meninas (Amnistia, 2008).

No nível seguinte está a “Educação dos Profissionais” que possui uma forte fundamentação teórica que pode mudar o envolvimento cotidiano destes em direção a fortalecer ou enfraquecer as normas sociais que sustentam e mantém a violência, especialmente, em locais de trabalho socialmente reservados para homens, como a polícia, tribunais de justiça e instituições médicasNo Brasil, outras instituições podem ser inseridas, como equipes de futebol, por exemplo. (Flood, 2011). No quarto nível, a estratégia utilizada é o “Envolvimento, Fortalecimento e Mobilização de Comunidades”, que para Flood (2011) trata-se de os profissionais possibilitarem que as comunidades possam criar estratégias locais para responder de modo eficaz a questão da violência. Entre as ações estão as “Equipes de Ação Comunitárias", onde os membros da comunidade são os responsáveis para criar mecanismos de suporte e prevenção a violência.

Em 2017, pensando em possibilitar que este quarto nível fosse possível em um Centro de Referência de Assistência Social, o município de Balneário Camboriú, Brasil, em parceria com uma universidade local, realizou um grupo comunitário para trabalhar a prevenção à violência de gênero. Por meio de suas narrativas pessoais sobre as violências, as usuárias e os usuários eram convidados a refletir sobre as violências que sofriam e praticavam de modo a desnaturalizar as mesmas.

O nível 05, “Alterar as Práticas Organizacionais” e, por fim, o sexto nível “Influenciando Políticas e Legislação”, são ações macroestruturais que envolvem todos os envolvidos nos níveis listados acima. As mudanças nas práticas organizacionais, como instituições de ensino, poder judiciário, instituições militares, polícias (Flood, 2011), e vamos inserir aqui, os equipamentos de Assistência Social, são tão importantes quanto envolver a comunidade na prevenção, isso requer afirmar que, se as práticas organizacionais não mudarem as ações de prevenção demoram para se tornarem eficazes. Da mesma forma, não basta apenas envolver os sujeitos nas ações se não possibilitar que essas ações se transformem em ações políticas, da mesma forma, devem também estar envolvidos na construção e na universalização de direitos.

Tendo propostas ações para a Proteção Social Básica por meio do PAIF, na Proteção Social Especial de Média Complexidade, traremos alguns exemplos de experiências com homens autores de violência que podem servir de referência para a criação de estratégias eficazes, destacando que as ações acima também podem ser efetivas para esta proteção, contudo, estamos destacando a especialidade que o serviço possui. Vale a pena destacar que os programas de atenção aos homens autores de violência do Brasil, em sua maioria, têm proposto reflexões sobre as causas do comportamento violento por meio do enfoque nos Estudos de Gênero. Em outros países, como México e Argentina, por exemplo, além da perspectiva de gênero, também há intervenções fundamentada no enfoque cognitivo-comportamental e em grupos de reeducação (Banos, 2017).

Iniciamos com a experiência do mapeamento de programas que atendem homens autores de violência no Brasil realizado por Beiras (2014). O objetivo foi conhecer as especificidades e necessidades dos programas e, ainda, realizar a promoção do desenvolvimento de uma rede entre estes programas para intercâmbio de informações e trocas de experiências que possibilitasse futuros aprimoramentos. Um dos programas mapeados é realizada no município de Blumenau, no Estado de Santa Catarina

Tendo como um dos principais atores o assistente social Ricardo Bertoli, que iniciou, no início da década de 2000, um programa de atendimento a homens autores de violência. Atualmente as atividades são realizadas também por outros profissionais como estratégia da política pública de Assistência Social, nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social, neste município. (Beiras, 2014) traz que as intervenções estão organizadas em dois eixos: o primeiro eixo é o da Proteção, que acontece por meio do serviço de acolhimento institucional às mulheres e seus filhos em situação de risco pessoal provocado pelo fenômeno da violência doméstica, e o segundo eixo é o da Prevenção e Promoção, que propriamente o grupo com os homens destas famílias em situação de violência doméstica.

Outra proposta que nos produzem sentidos é realizada pelo Instituto Noos, por meio da metodologia denominada “Grupo Reflexivo de Gênero” (Beiras, 2016). Beiras (2014: 22)informa que “o objetivo da intervenção está em promover e também oferecer métodos pacíficos de resolução de conflitos, assim como promover relações equitativas de gênero”. Sobre a metodologia utilizada, trata-se de “uma prática onde diferentes descrições sobre como nos relacionamos, a partir de um lugar socialmente definido, são expostas e confrontadas” (Beiras, 2016)O livro está disponibilizado na versão digital e pode ser acessado pelo link: https://issuu.com/annacarlaferreira/docs/metodologiapdf-07-06-2017.Tal proposta é potente para o atendimento de homens autores de violência no CREAS, pois parte da compreensão da violência como uma construção social, podendo, então, ser desconstruída. Trata-se, na compreensão de Beiras (2016) e Bronz, de criar um espaço convívio onde se deve valorizar a diversidade através do exercício do diálogo, de problematização e questionamento que pode promover uma imersão crítica e novos olhares sobre o cotidiano de seus participantes, de produção individual e coletiva de conhecimento, de valorização da cidadania quando desvela a importância de cada participante e do grupo na constituição dos saberes ancorados no contexto social do qual todos fazem parte, exatamente o que prevê a Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2004) e a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (CNAS, 2009).

É certo que outras práticas poderiam ser citadas como exemplos eficazes ou promissoras para o atendimento especializado de homens autores de violência no âmbito do PAEFI (Toneli, 2010; Beiras, 2013), contudo as duas práticas foram escolhidas por serem experiências atuais que acontecem em território nacional, especialmente, por estarem fundamentadas nas teorias feministas e nos estudos das masculinidades.

Assim, o diferencial da Assistência Social, seja no CRAS ou CREAS, para ser o lugar de atendimento de homens autores de violência, reside em sua condição de política pública de proteção social que tem como objetivo fortalecer os vínculos familiares e comunitários. Esta condição coloca em destaque um importante aspecto: não é um lugar reconhecido pela punição às usuárias e aos usuários. Ao não ser este lugar, onde o “fantasma da punição” está presente, como nas delegacias, tribunais e defensorias públicas, a possibilidade de vínculo dos homens com o serviço, em nossa compreensão, pode ser facilitada.

Nossa tendência é reforçar o CREAS como o principal lugar na Assistência Social, por dois motivos que destacamos da Tipificação dos Serviços Socioassistenciais: (1) as usuárias e os usuários são pessoas que vivenciam violações de direitos por decorrência de violência (física, psicológica, sexual e outras); (2) prevenção a reincidência de violações de direitos. Estes motivos criam a possibilidade do atendimento de homens autores de violência, pois sem o trabalho com os mesmos, a reincidência fica facilitada e novas violações de direitos devido à violência.

Contudo, a construção da Assistência Social enquanto este lugar traz desafios. Em pesquisa de mestrado realizada por Cardoso (2018) em um CREAS, foi possível constatar que as práticas das trabalhadoras e dos trabalhadores ainda são planejadas sem a reflexão sobre Gênero, e por consequência, sobre as masculinidades. Algumas destas práticas ainda reforçam as mulheres como responsáveis pela violência que sofrem e, algumas outras, colocam os homens também como vítimas da Lei Maria da Penha. Outros aspectos da pesquisa podem ser relevantes para a discussão. Entre eles está o olhar criminalizante ao autor de violência, os mesmos são reconhecidos como “agressores”, em uma condição naturalizada da violência onde não se há o que fazer. Outros pontos são os (pré)conceitos dos profissionais quanto as metodologias coletivas de atendimento e acompanhamento e as ações feminilizadas, que são pouco atrativas para os homens. Este último ponto se conecta ao já citado anteriormente em Baremblitt (1992 citado por Franco, 2005) sobre a construção da demanda.

Nesta direção, resgatando o nível 5 proposto por Flood (2011), é necessário capacitar estas trabalhadoras e estes trabalhadores, por serem, junto com os usuários e as usuárias, os principais sujeitos “protagônicos” de uma nova organização do processo de produção (Franco, 2005) de proteção social, a partir de discussões e mobilizações. Assim, a construção da Assistência Social como um espaço para o trabalho com homens autores de violência, utilizando as palavras de Franco (2003 citado por Franco, 2005: 187) escritas para serviços de saúde, “é sempre um processo de construção social, política, cultural, subjetiva e tecnologicamente determinado”. Neste sentido, algumas ações estão sendo realizadas com as equipes de referência de Centros de Referência de Assistência Social em Florianópolis, Brasil, meio da extensão universitária, onde Beiras, em conjunto com acadêmicos, estão capacitando estas equipes para compreender o campo de atuação destes profissionais por meio da ótica dos Estudos de Gênero, para assim propor processos formativos que os capacitem a atuar com homens autores de violência e as demandas que estes apresentam aos serviços socioassistenciais.

Considerações Finais

Ao longo deste artigo, apresentamos à política pública de Assistência Social e seus níveis de proteção, em específico a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial de Média Complexidade, algumas experiências brasileiras e outras da América Latina que podem ser uteis aos seus serviços, trabalhadoras, trabalhadores, usuárias e usuários na construção das demandas que chegam aos equipamentos, seja no CRAS, seja no CREAS. Em um campo marcado pelo feminino, ampliar a matriz de possibilidades para o atendimento de homens nos parece totalmente necessário.

Parece-nos claro que as experiências propostas e os recortes feitos nas orientações do Ministério do Desenvolvimento Social serviram para comprovar nosso objetivo em tornar a Assistência Social um lugar possível e potente para o trabalho com homens autores de violência. Contudo, cabe-nos ressaltar que as partes deixadas de fora não tornam nossos argumentos descartáveis ou mesmo contraditórios. Destacamos, ainda, que compreendemos a relação entre homens e políticas de igualdade de igualdade de gênero como uma agenda em construção (Ramirez, 2017).

Da mesma forma, ao citarmos estes exemplos de ações para a Proteção Social Básica e para a Proteção Social Especial, nossa intenção foi possibilitar o acesso a modelos que podem ser eficazes, possíveis ou potencialmente possíveis, pois afirmar que eles serão eficazes vai na contramão de uma das categorias que consideramos importantes para o trabalho com homens, o Saber Localizado. Como dito anteriormente, que possam servir de inspiração e de modelos para o fortalecimento da política pública e também da Lei Maria da Penha.

Falando nas categorias propostas pelas Teorias Feministas, reforçamos que as três categorias, Saber Localizado, Experiência e Interseccionalidade, não são as únicas importantes, mas sim a que escolhemos trazer a discussão. Estas, ao serem trabalhadas em conjunto no âmbito do SUAS, no trabalho social com as famílias, são potentes para fundamentas as ações, pois ampliam a matriz de inteligibilidade das equipes interdisciplinares sobre Gênero e Masculinidades.

Como Beiras (2009) apontou, as intervenções com homens autores de violência devem ser realizadas por equipes interdisciplinares, atendendo tanto no nível micro, que entendemos ser as ações do CREAS/PAEFI, quanto no nível macro, onde está localizado o CRAS/PAIF. Essas intervenções devem superar os modelos convencionais que buscam causas exclusivamente intrapsíquicas para o comportamento da violência, indo ao encontro de uma prática social crítica e comunitária, de trabalhos grupais reflexivos atentos a ressignificação das masculinidades e feminilidades, com fundamentos no movimento feminista, de modo a responsabilizar o autor da violência, mas também promover as mudanças subjetivas em homens e mulheres.

Fica evidente, portanto, que a Assistência Social ao colocar enquanto política pública com o objetivo principal de promover a proteção social de famílias e sujeitos, ela deve se propor a ser o lugar que transcenda o atendimento e do acompanhamento destes. Deve ser um lugar que promova as reflexões e debates necessários para a transformação de uma sociedade sem hierarquias de gênero, o que requer afirmar, que deve ser um lugar que vai além dos grupos de homens dos autores de violência, indo em direção a discussão das masculinidades e das feminilidades e o que se coloca tradicionalmente como lugar de homem e lugar de mulher enquanto identidades fixas.