Políticas de Enfrentamento da Violência Contra Mulheres no Brasil: Construção e Desmonte

Cecilia Sardenderg
Universidade Federal da Bahia

Resumen—As políticas para mulheres, com destaque para o Programa ``Mulher, Viver Sem Violência'', um dos programas mais abrangentes no tocante ao enfrentamento da violência de gênero contra mulheres, se destacaram como um dos principais avanços trazidos pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e, consequentemente, se tornaram um dos principais objetos da desconstrução encetada pelo governo de Michel Temer, levado ao poder com o Golpe de 2016. Em contraste ao feminismo de Estado participativo propagado pelos Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff Michel Temer instalou um governo ultraliberal fincado no patriarcalismo, caracterizado pela ausência de representação feminina nos altos escalões e sem compromisso com as lutas e demandas das mulheres. Meu objetivo neste trabalho será discutir tanto os avanços registrados durante os Governos Lula e Dilma no tocante ao enfrentamento da violência contra mulheres, quanto o desmonte dessas políticas a partir do afastamento e impeachment da Presidenta Dilma e implantação do governo Michel Temer

Palabras clave—Políticas de Enfrentamento da Violência Contra Mulheres, Golpe de Estado de 2016, Brasil

Policies to Combat Violence Against Women in Brazil: Construction and Dismantling

Abstract—Public policies for Women, with emphasis on the ``Women Living Without Violence'' program, one of the most comprehensive government programs in addressing gender violence against women, were among the leading programs of PT - the Workers' Party, and, consequently, one of the main objects of the deconstruction initiated by the government of Michel Temer, who came into power with the 2016 Coup. In contrast to the participatory state feminism propagated by the governments Lula da Silva and Dilma Rousseff, Michel Temer installed an ultraliberal government based on patriarchalism, characterized by the absence of female representation in the upper echelons and without commitment to the struggles and demands of women. My objective in this work will be to discuss both the advances made during the Lula and Dilma Governments regarding the confrontation of violence against women and the dismantling of these policies since the removal and impeachment of President Dilma and the implementation of the Michel Temer government

Keywords—Public Policies in Confronting Violence Against Women, 2016 Coup, Brazil

Introdução

Era o dia 12 maio de 2016, um domingo. A IV Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, que reunira mais de 3000 participantes de todo o país em Brasília para avaliar o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres em curso, chegava ao seu final. Quase na mesma hora, encerrava-se também a votação no Congresso Nacional pelo afastamento da Presidenta Dilma Rousseff (PT), como parte do processo de impeachment comandado pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB), então Presidente da Câmara de Deputados e aliado político do Vice Presidente Michel Temer (PMDB).

Indignadas com esse ilegítimo afastamento --entendido como \emphgolpe vez que nenhum crime fora cometido pela Presidenta (Teles, 2017)--, as participantes da IV Conferência saíram em marcha em direção ao Congresso Nacional para lavrar seu protesto e demonstrar seu apoio à Dilma Rousseff. Mas foram barradas no caminho pela Polícia Legislativa que, sob as ordens do Presidente da Câmara, as recebeu com sprays de pimenta e outras agressões dessa ordem - um prenúncio do que viria da parte do Governo Michel Temer para as mulheres (Santana, 2018). Tão logo assumiu o poder como presidente interino, Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, que abrigava a Secretaria de Políticas para Mulheres, transferindo-a para o Ministério da Justiça, mas sem o status anterior. Ademais, para coordená-la, o interino nomeou a ex-deputada e ex-presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Fátima Pelaes (PMDB), que logo transformou as instalações da referida Secretaria em um espaço para cultos religiosos, ferindo o princípio de laicidade do Estado.

Note-se que, desde 2015, quando as ameaças de impeachment se acirraram, os movimentos de mulheres já vinham demonstrando seu apoio à Presidenta, a exemplo da Marcha das Margaridas, com mais de 70 mil mulheres reunidas no Estádio Mané Garrincha em agosto, bem como da Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo, com cerca de 50 mil, reunidas também em Brasília em novembro do mesmo ano. E há de se lembrar ainda a força da militância feminista na “Primavera das Mulheres”, denominação dada aos protestos pelo Brasil afora entre outubro e novembro de 2015 contra o Projeto de Lei 5.069/2013 Acrescenta o art. 127-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882, de autoria do Deputado Eduardo Cunha (PMDB), que dificulta o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual e para o abortamento, mesmo nos casos previstos por lei.

Ressalte-se que todos os movimentos e marchas acima citadas expressaram fortemente o seu “Não ao Golpe” - e não ao acaso. Como destacam Linda Rubim e Fernanda Argolo (2018: 10), a eleição da mulher Dilma Rousseff “representou uma mudança significativa para a história das mulheres e, particularmente para o perfil presidencial do país, até então, exclusivamente, dominado por homens”. Acrescente-se também que as políticas para mulheres, tais como a implementação da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio, do Programa “Mulher, Viver Sem Violência” e de outros mais dessa ordem, originárias de propostas dos movimentos feministas, representaram mudanças históricas, sendo um dos principais avanços trazidos pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e, consequentemente, tornaram-se um dos principais objetos da desconstrução encetada pelo governo de Michel Temer. Resultado: em contraste ao feminismo de Estado participativo propagado pelos Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (Sardenberg, 2017), Michel Temer instalou um governo ultraliberal fincado no patriarcalismo, caracterizado pela ausência de representação feminina nos altos escalões e sem compromisso com as lutas e demandas das mulheres (Prazeres, 2017).

Não custa lembrar que as políticas públicas se referem ao conjunto de ações e decisões por parte do Estado (federal, estadual, municipal), “orientado por determinados objetivos, refletindo ou traduzindo um jogo de interesses” (Farah, 2004: 47). Ou seja, as políticas públicas sempre envolvem “vontade política”. Os programas governamentais são parte das ações, constituindo-se como formas de operacionalizar e implementar as políticas. Todavia, sem o orçamento necessário para tanto, decisões e programas ficam apenas no papel, tal como vem acontecendo em relação às políticas para mulheres no Governo Michel Temer.

Neste artigo, meu foco de atenção recai, especificamente, sobre as políticas de enfrentamento da violência contra mulheres. Procuro aqui delinear, por um lado, o traçar das políticas em questão, com ênfase nos avanços registrados no período de 2003 a 2016 nesse tocante e, por outro, analisar o desmonte dessas políticas e programas pertinentes a partir do processo de afastamento da Presidenta Dilma Rousseff.

Para tanto, inicio a discussão caracterizando a situação de violência contra mulheres no Brasil, passando para um breve histórico das lutas e conquistas dos movimentos feministas para combatê-la. Destaco, em especial, a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres pelo Presidente Lula, em 2003, e a passagem da Lei Maria da Penha, em agosto de 2006, delineando os programas de apoio a sua implementação desenvolvidos até 2016, o Programa “Mulher Viver Sem Violência”, formulado no Governo Dilma Rousseff em especial. Discuto, então, brevemente, o golpe contra a referida Presidenta, voltando-me, a seguir, para o processo de desmonte dessas políticas e programas pelo Governo Michel Temer.

Nesse intuito, além de relatórios e artigos científicos, tenho ainda como fonte notícias de jornais, disponíveis em sítios da internet, que bem indicam como vem se dando o processo de sucateamento dos equipamentos de acolhimento das vítimas. Isso resulta na sua revitimização por meio da violência institucional, o que, por sua vez, contribui para o agravamento da violência de gênero contra mulheres no país.

Antes de levar adiante essa discussão, porém, devo ressaltar que não se trata aqui de uma análise dita “inocente” ou não compromissada. Ao contrário, posiciono-me como ativista feminista que tem participado dos movimentos e lutas pela construção das políticas de enfrentamento da violência contra mulheres, tanto no Brasil, quanto no exterior. Identifico-me, também, como mulher que já sofreu violência doméstica e assédio sexual, sendo, portanto, parte do contingente de mulheres brasileiras que já se viu em situação de violência. Por isso mesmo, valho-me aqui de uma postura epistemológica baseada na perspectiva da “objetividade engajada”, nos moldes delineados por Boaventura (Sousa, 2007), procurando evitar tanto o viés do subjetivismo quanto da falsa visão da neutralidade das teorias.

A Violência de Gênero Contra Mulheres no Brasil

Entendo aqui por violência de gênero, toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual (Sardenberg, 2018). Nessa definição, tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência sexual, podem ser alvos da violência de gênero. No entanto, em virtude da ordem de gênero patriarcal, dominante em nossa sociedade, são as mulheres e crianças, como também homossexuais, bissexuais e transexuais, que se veem mais comumente na situação de vítimas desse tipo de violência.

A violência de gênero contra mulheres é produto da ordem de gênero patriarcal que objetifica as mulheres e as torna propriedade dos homens, dando a eles em certas instâncias até mesmo o poder de vida ou morte sobre elas (Saffioti, 2001, 2002). De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida por Convenção de Belém do Pará (discutida mais à frente), enquadra-se como violência contra as mulheres “[...] qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Presidencia, 1996). Incluem-se aí violência física, sexual e psicológica, ocorrida seja no âmbito da família, da unidade doméstica, ou da comunidade, quanto perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, inclusive quando negligenciam esses tipos de violência. Trata-se de um fenômeno de dimensões mundiais, mas que no Brasil, como de resto na América Latina, tem se caracterizado por ataques brutais contra mulheres, não sendo poucos os casos que denotam extrema crueldade.

Segundo dados do Mapa da Violência foram registrados 4.473 casos de homicídios dolosos contra mulheres no Brasil, em 2017, o que correspondeu a cerca de 12 assassinatos de mulheres por dia, ou seja, a uma mulher assassinada a cada duas horas, perfazendo uma taxa de 4,3 homicídios femininos a cada 100 mil mulheres na população. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa figura corresponde a aproximadamente o dobro da taxa global de homicídios dessa natureza, colocando o Brasil na 7ª posição do ranking mundial das 83 nações mais violentas para as mulheres (Cerqueira, 2017).

Há de se destacar que do total dos homicídios contra mulheres, 946, ou seja, menos de um quarto foi classificado como feminicídio, definido como o assassinato de mulheres por sua condição de gênero (Segato, 2006), já reconhecido na Lei do Feminicídio como homicídio qualificado (Brasil, 2015). Na análise de especialistas, porém, essa porcentagem relativamente reduzida se deve às subnotificações, talvez até mesmo por conta da falta de treinamento dos técnicos em reconhecer casos de feminicídio (FBSP, 2015). Assim mesmo, segundo avaliação da Organização Mundial da Saúde (OMS), esse total correspondeu a uma taxa de 4,8 feminicídios a cada 100 mil mulheres, o que é equivalente a quinta maior taxa de feminicídios no mundo (Cerqueira, 2017).

No Brasil, tal como na maioria dos países dos quais se tem notícia, os perpetradores desses crimes são na sua maior parte familiares das vítimas, geralmente parceiros ou ex-parceiros. De fato, de um modo geral, a incidência de violência física contra mulheres, particularmente no âmbito doméstico, é bastante alta. A pesquisa nacional “Percepções sobre a Violência Doméstica contra a Mulher no Brasil", realizada pelo Instituto Avon e pela Ipsos (2011), revelou que quase metade das mulheres entrevistadas já havia sofrido violência física no ambiente doméstico. Entre as agredidas, 15% apontaram ainda que foram forçadas a manter relações sexuais com o companheiro, sofrendo o que se reconhece como `estupro conjugal'. Dentre os homens entrevistados, 38% confessou já ter agredido mulheres fisicamente, seja em função do ciúmes, do alcoolismo ou mesmo sem motivo aparente (Ipsos, 2011).

O mesmo estudo indicou que a violência doméstica, particularmente a conjugal, permanece ainda bastante subnotificada, vez que existe muita desconfiança quanto à proteção jurídica e policial nesses casos. Depoimentos registrados em diferentes estudos sugerem que apesar do maior conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, a desconfiança em relação a sua eficácia ainda se mantém, sobretudo devido ao atendimento precário nas delegacias especializadas e à demora de se ter resultados concretos nos procedimentos judiciários (Senado, 2013; Tavares, 2015; Santos, 2015).

Tal observação também se aplica à violência sexual, com destaque para o estupro, que mesmo assim aparece com taxas alarmantes. Segundo dados publicados na 10ª edição do Relatório Anual de Segurança Pública para 2015, foram registrados 5 estupros por hora, ou seja, cerca de 125 estupros por dia no país (SPM, 2014). Mas, alerta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), responsável pela elaboração do relatório em questão, que a subnotificação deste tipo de violência é consideravelmente alta. O Fórum estima que cerca de 65% das vítimas de estupro não denunciam esse crime, seja por medo de novas represálias, de se expor ao ridículo, ou da crença de que a polícia não faria mesmo nada a respeito (FBSP, 2015).

Cabe observar que, nos últimos anos, casos de “estupro coletivo" atraíram a atenção da mídia, trazendo a questão da violência sexual para as páginas das redes sociais. O destaque vai para o caso do estupro de uma adolescente no Rio de Janeiro, ocorrido em maio de 2016, no qual participaram supostamente cerca de 33 homens e adolescentes do sexo masculino. Segundo se apurou, a jovem e uma amiga, também adolescente, sairam de um baile funk acompanhadas de dois dos acusados dirigindo-se para um barraco abandonado onde se drogaram. A amiga e os rapazes foram embora pela manhã, deixando a vítima desacordada sob o efeito das drogas, tendo os dois rapazes voltado mais tarde com vários outros e a violentado seguidamente, um deles gravando esses atos e postando o video na internet.

A jovem não fez a denúncia, pois, como bem ressaltou a Senadora Vanessa Grazziotin, ela teve “[...] medo desses marginais, medo da reação da família, medo da reação da sociedade, medo da reação das autoridades [...]”(Mello, 2017: 06). Apurou-se, depois, que o número de envolvidos era menor do que inicialmente se divulgou, sendo indiciados apenas sete dos rapazes, mas só depois que o caso já havia ganhado as páginas das redes sociais.

Nesse processo, a violência institucional também se fez presente. Segundo relataram Adriana (Mello, 2017: 04): e Lívia Paiva: “[...] a adolescente contou que se sentiu desrespeitada quando o delegado perguntou se ela “gostava de fazer sexo com vários homens”. Além disso, a jovem afirmou que passou por constrangimento vez que se viu na situação de “[...] relatar os detalhes do estupro na presença de outros três homens numa sala envidraçada, de onde se via quem passava do lado de fora, inclusive, um dos acusados do crime”.

As mesmas autoras destacam a repercursão do caso, não apenas na mídia, como também no Congresso Nacional e no Poder Judiciário, nesses últimos, muito em função da própria mídia. Ressaltam, em especial, a inclusão de cláusulas aumentando a pena em casos de estupro coletivo e `divulgação da cena' no Projeto de Lei 618/2016Trata-se de uma emenda que acrescenta o art. 225-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever causa de aumento de pena para o crime de estupro cometido por duas ou mais pessoas. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123183, que foi aprovado por unanimidade no Senado Federal, bem como da inclusão dos termos “estupro coletivo” e “estupro coletivo de vulnerável” no linguajar jurídico, tal qual visto no habeas corpus impetrado por dois dos condenados. Lembram, porém, que mesmo antes do referido caso ganhar as manchetes, já se via um considerável impacto na mídia em relação a assédio sexual, sobretudo a partir da campanha lançada em outubro de 2015 pelo Projeto Think Olga. Criado para estudar a violência sexual no Brasil, essa campanha teve uma resposta muito forte - e positiva (Mello, 2017).

De fato, dentro de alguns dias, a hashtag #primeiroassedio, referindo-se a relatos dos casos de assédio sexual sofridos por mulheres, foi replicada mais de 82 mil vezes nas redes sociais. Pesquisadoras do projeto analisaram 3.111 histórias compartilhadas pelo Twitter, verificando que a média de idade em que as mulheres sofreram o primeiro assédio sexual ficava nos 9,7 anos de idade, sendo que um número considerável de mulheres relatou ter sofrido os primeiros casos de abuso sexual entre 5 e 7 anos de idade, na maioria dos casos perpetrados por parentes próximos (Moraes, 2015).

Breve Histórico do Combate à Violência Contra Mulheres no Brasil 1980-2002

É preciso ressaltar que a violência contra as mulheres e meninas no Brasil está longe de ser um fenômeno recente. Trata-se, outrossim, de uma prática enraizada na nossa cultura desde o início do período colonial, podendo-se mesmo dizer que a ideologia patriarcal é o principal elemento da construção de gênero no Brasil, institucionalizando a violência contra a mulher na família colonial a ponto de colocar a vida das mulheres nas mãos de pais, irmãos e maridos: eles poderiam matar suas mulheres para defender a honra da família. Até algumas décadas atrás, mesmo sob o protesto de mulheres (Blay, 2008), um homem ainda poderia reivindicar `legítima defesa da honra' e ser considerado não culpado pelo assassinato de sua companheira (Ardaillon, 1987; Blay, 2003).

Foi um desses casos, ocorrido no final de dezembro de 1976, na praia de Búzios, que deslanchou um movimento mais organizado contra a habitual impunidade com espancamentos e assassinatos de mulheres por seus parceiros. Tratava-se do assassinato de Ângela Diniz, jovem da sociedade mineira, com quatro tiros à `queima-roupa' desferidos por seu namorado, Doca Street. No primeiro julgamento, ocorrido em 1979, sob o argumento de que o crime acontecera em `legítima defesa da honra', o réu recebeu a pena mínima de dois anos com sursis (Lana, 2010). Para tanto, a defesa transformou a vítima em ré, acusando-a de “denegrir os bons costumes", “ter vida desregrada", ser “mulher de vida fácil”. No dizer da antropóloga Miriam (Grossi, 1993: 167), “[...], era como se o assassino tivesse livrado a sociedade brasileira de um indivíduo que punha em risco a moral da “família brasileira”. E acrescenta: “O resultado do julgamento de Doca Street provou a eficácia desta lógica junto à Justiça”.

Com efeito, a sentença provocou a indignação dos movimentos de mulheres, que saíram às ruas com a campanha, “Quem Ama não Mata”, contribuindo para mudar a opinão pública em relação à impunidade nos assassinatos de mulheres. No segundo julgamento, em 1981, Doca Street foi julgado culpado e recebeu a sentença de 15 anos de prisão, uma sentença ainda assim reduzida em vista do crime cometido (Blay, 2008).

Mas o movimento deslanchado como esse julgamento se espalhou para outras grandes cidades do país, dando visibilidade à prática secular da violência contra a mulher na sociedade brasileira (Grossi, 1993; Blay, 2008). Para além do fim da impunidade aos agressores, os movimentos em curso demandavam também medidas de acolhimento e assistência às mulheres em situação de violência, aos moldes do que se registrava em outros países.

De fato, conforme observado na Europa e Estados Unidos da América, também no Brasil os centros de referência, operados por voluntárias, foram o primeiro tipo de assistência oferecida a essas mulheres (Campos, 2015). No Brasil, o centro pioneiro --conhecido como SOS Mulher-- foi criado na cidade de São Paulo em outubro de 1980, como resultado das discussões do também pioneiro Comitê de Combate à Violência Contra a Mulher, formado por diferentes grupos feministas ativos em São Paulo (Gregori, 1993; Verardo, 1993). A proposta do centro era oferecer às mulheres serviços `especializados', particularmente um acolhimento atencioso para ouvir suas queixas. Esses serviços eram coordenados por feministas voluntárias trabalhando por revezamento, mas com o objetivo maior de operar de acordo com os grupos de conscientização, em que as mulheres deveriam compartilhar suas experiências entre si, para uma compreensão coletiva da violência como um fenômeno social.

O SOS Mulher em São Paulo durou três anos (1980-1983), período em que outros dois centros foram criados nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro, tendo também curta duração. Tratava-se de um serviço voluntário, sem financiamento, dificultando assim sua operação, já que as voluntárias dispunham apenas de tempo limitado para o atendimento. Apesar de sua breve existência, esses centros mostraram sua importância, não só ao trazerem à luz o fenômeno da violência doméstica, como também ao oferecerem às mulheres um meio de compartilhar sua experiência dolorosa com outras em situação semelhante e receber diferentes formas de assistência para superar a violência sofrida. Ademais, a experiência do SOS foi fundamental para pressionar o Estado a considerar a violência contra a mulher como um grave problema social, necessitando de políticas adequadas para enfrentá-lo (Diniz, 2006; Soares, 2015).

Há de se lembrar que a década de oitenta foi marcada pelos movimentos de redemocratização do país, dentre os quais se destacou o movimento feminista. Seu apoio aos políticos de oposição ao regime militar na primeira eleição para governadores desde o golpe de 1964 deu margem a importantes negociações para o atendimento às demandas feministas, abrindo espaço para a formulação de políticas públicas específicas. Assim, em São Paulo, em 1983, foi criado o Conselho Estadual da Condição Feminina, o primeiro dessa ordem no país e, em 1986, criou-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o CNDM, com sede em Brasília, que teve um papel importante na organização dessas demandas.

Uma das principais questões em pauta nas negociações em curso era o combate à violência contra mulheres, com políticas que possibilitassem maior acesso à justiça e um atendimento apropriado às vítimas. Até então, nas delegacias de polícia regulares, as mulheres que compareciam para registrar queixas se deparavam com a violência institucional --com respostas sexistas por parte da polícia-- sendo muitas vezes re-vitimizadas. Da busca por um acolhimento mais humanizado, tal qual oferecido nos centros de referência, surgiu a proposta da criação de delegacias especializadas, inclusive com a recomendação de trabalharem com uma equipe de mulheres devidamente treinadas. Por meio de um articulação de grupos feministas e de representantes do Governo Franco Montoro (MDB), em São Paulo, e sob pressão também do Conselho Estadual da Condição Feminina, foi então criada, em 6 de agosto de 1985, a Primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) (Saffioti, 1994). E a idéia “pegou”:

Imediatamente, outras 152 foram instaladas, sendo que mais da metade delas no Estado de SãoPaulo e as demais principalmente nas capitais de outros estados. Embora a grande concentração das delegacias tenha permanecido no Estado de São Paulo a existência do serviço quase restrito às capitais, houve uma evidente influência no sentido de um incremento de registro de ocorrências policiais em todo o Brasil
(Camargo, 2003: 41).

Com efeito, a década de 1980 foi o cenário principal da criação dessas delegacias, fato constatado em um levantamento realizado em 2010, pelo qual se apurou que 70% das DDMs e DEAMs então existentes haviam sido criadas entre 1985 e 1989 (Pasinato, 2008; Gomes, 2010). Desde então, elas se multiplicaram país afora, passando por modificações importantes no seu status e funções de acordo com a legislação em vigor ao longo dos anos (Bonetti, Pinheiro e Ferreira, 2016). No entanto, elas continuam sendo o serviço mais procurado por mulheres em situação de violência, destacando-se como a principal portal de acesso à justiça nesses casos. Por isso mesmo, não é de surpreender que essas delegacias tenham sido (e continuam sendo) foco de atenção de vários estudos e avaliações, sendo frequentemente criticadas por não cumprirem efetivamente o papel delas esperado (Santos, 2010; Debert, 2007; Gomes, 2009; Tavares, 2015).

Destaque-se que ao lado das delegacias, também as `casas abrigo' tem cumprido uma função importante no atendimento a mulheres em situação de violência, principalmente para aquelas sofrendo ameaça de morte. Nos Estados Unidos da América e na Europa, abrigos dessa natureza surgiram durante a década de 1970, funcionando com o trabalho de voluntárias, geralmente ativistas feministas. Aos poucos, esses abrigos foram se tornando parte das políticas nacionais de diferentes países, recebendo então o financiamento necessário para cobrir os custos de manutenção, sobretudo com as equipes (Soares, 1999).

No Brasil, apesar da casas abrigos se constituirem como uma das principais demandas dos movimentos feministas, a primeiro delas --o Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica (COMVIDA), de São Paulo-- só foi criado em 1986, durando apenas três anos, devido à falta de apoio financeiro contínuo, um problema que se abateu sobre iniciativas semelhantes em outras capitais (Falcao, 2008; Ribeiro, 2014).

Vale ressaltar que, como resultado das lutas dos movimentos sociais, a década de 1980 trouxe importantes mudanças legais para as mulheres, com desdobramentos para o combate à violência. Os movimentos feministas e de mulheres não só participaram das lutas que trouxeram o fim do regime militar e deslancharam o processo de redemocratização do país, como também exerceram papel importante na elaboração da nova Constituição Federal de 1988. Sob a liderança do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e com o apoio ativo do chamado “Lobby do Baton” dentro do Congresso Nacional, avanços fundamentais foram garantidos na nova constituição (Barsted, 2016; Sardenberg, 2017). Dentre eles, o princípio da igualdade de direitos entre os sexos e cláusulas que garantem a assistência do Estado a todos os membros de um grupo familiar, incluindo a criação de mecanismos legais para combater a violência doméstica, tal qual vigora no artigo 226, parágrafo 8º, onde se lê que “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (Brasil, 2003).

Note-se que as mulheres vítimas de violência sexual no Brasil vivenciaram por muito tempo a situação de revitimização, pois não existiam provisões para a interrupção das gestações resultantes, mesmo que essa cláusula estivesse incluída no Código Penal Brasileiro desde 1940. Foi somente em 1989, na gestão da Prefeita Luiza Erundina (na época, do PT) e sob a pressão dos movimentos feministas, que se deu início no Hospital Jabaquara, em São Paulo, à oferta de atenção especializada às instâncias de violência sexual, inclusive a interrupção da gravidez (Talib, 2005). Todavia, só dez anos mais tarde, em 1999, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, se deu procedimento à regulamentação nacional do aborto previsto em lei, com o lançamento da norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, com recomendações para a normatização e estruturação dos serviços (Madeiro, 2016).

Nos anos 1990, mudanças na legislação e na justiça brasileiras em torno do combate à violência contra mulheres ganharam maior legitimação e suporte com as declarações e planos aprovados nas conferências mundiais das Nações Unidas, com destaque para a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena (1993), a Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, no Cairo (1994) e a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim (1995). O Brasil participou de todas essas conferências, endossando todos os documentos e convenções aprovadas, assumindo também um papel de liderança no avanço da discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos (Sardenberg, 2015). Isto, com o tempo, levou à ratificação, em sua totalidade, da CEDAW - Convenção para a Eliminação de Todas as Discriminações contra a Mulher, que havia sido aprovada pela ONU em 1979, mas apenas parcialmente pelo Brasil, então sob o poder do militares.

Pode-se dizer que os maiores avanços em termos internacionais em relação às questões de violência contra as mulheres se deram com a Conferência de Direitos Humanos, realizada em Viena (1993). Como resultado de uma mobilização global com a participação de mulheres de todas as regiões, tanto de governos quanto de ONGs feministas, a Declaração de Viena de 1993 incluiu a afirmação da universalidade dos direitos das mulheres como direitos humanos e um apelo à eliminação da violência baseada no gênero. Como resposta, a Assembléia Geral da ONU adotou a Declaração da Eliminação da Violência contra a Mulher, sugerindo que os países-membros adequassem ou formulassem legislação específica seguindo as recomendações ali delineadas (Bandeira, 2015; Barsted, 2016).

Outra importante convenção internacional dentro dos mesmos parâmetros é a Convenção Interamericana para a Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher, mencionada anteriormente, que foi aprovada pela Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos - OEA em 1994, em Belém, do Pará, ficando conhecida como “Convenção de Belém do Pará” (Bandeira, 2015). Tanto essa convenção quanto a Declaração de Viena responsabilizam os países signatários pela execução das estipulações acordadas, caracterizando como negligentes aqueles que não agirem de acordo. Isso implica na constituição de “tribunais internacionais” e condenações – tendo o primeiro tribunal dessa ordem, realizado em 1998, condenado o governo brasileiro por “negligência e omissão” no caso de Maria da Penha Fernandes, em virtude da tentativa de homicídio sofrida por parte de seu ex-marido e do fracasso do Estado em atuar frente às várias queixas por ela registradas contra o agressor. Ele só foi preso por tentativa de homicídio em 2002, quase vinte anos após o atentado que a colocou em uma cadeira de rodas para o resto da vida (Sardenberg, 2010).

Em 1995, em conformidade com as recomendações da Plataforma de Ação de Beijing, aprovada na IV Conferência Mundial de Mulheres da ONU, foi criado o primeiro Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Sexual à Mulher, que obteve financiamento federal do Governo Fernando Henrique Cardoso, para a criação de novas delegacias e construção de abrigos a serem administrados pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), então vinculado ao Ministério da Justiça (Falcao, 2008). No entanto, a dotação para a sua implementação foi bastante precária; só a partir dos anos 2000, com a criação da Secretaria de Direitos da Mulher – SEDIM, e com a inclusão das políticas de combate à violência contra a mulher como parte do Programa do Plano de Governo, o Plano Plurianual de Investimentos 2000-2003 – Avança Brasil, melhores condições foram oferecidas para a sua efetivação. Assim mesmo, “a análise das realizações do Programa e do PPA, todavia, revelam o não cumprimento da meta de construção de abrigos e o contingenciamento dos recursos orçamentários” (Rocha, 2007: 5).

Ressalte-se ainda que, apesar do impulso dado pelas conferências, convenções internacionais e acordos para a criminalização da violência contra as mulheres, as lutas nesse sentido no Brasil sofreram um severo revês em 1995, com a aprovação da Lei 9.099/95. Esse ato legislativo instituiu os Juizados Especiais Criminais conhecidos pela sigla “JECRIMs”, considerados “revolucionários” pela comunidade jurídica, por supostamente facilitar o acesso à justiça em casos de crimes de menor potencial ofensivo. No entanto, esses tribunais especiais banalizaram os casos de violência contra as mulheres ao colocarem esses crimes no rol daqueles de `menor potencial ofensivo' , com a aplicação de sentenças menores e o pagamento de multas nominais para reparar a ofensa (Barsted, 2016).

Essa e outras questões pertinentes ao enfrentamento à violência contra mulheres foram temas tratados na Plataforma Política Feminista – PPF, elaborada a partir de conferências estaduais e da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, realizada em junho de 2002, em Brasília, com a participação de mais de 2000 mulheres de todo o país. O documento aprovado delineou a pauta política das mulheres para as eleições presidenciais daquele ano, tendo sido entregue ao Presidente-eleito, Luis Inácio Lula da Silva, que se comprometeu a atender as demandas ali contidas. Para tanto, tão logo assumiu o Governo, ele criou a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres – SPMulheres, com status de Ministério, e designou 2004 como `Ano das Mulheres', convocando, como parte dele, a I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, com o objetivo de elaborar o I Plano Nacional de Políticas para Mulheres (Sardenberg, 2014). Tais iniciativas abriram caminho para a formulação de uma política nacional de combate à violência, mais abrangente, e, em tempo, para a aprovação daLei Maria da Penha.

Políticas de Enfrentamento da Violência Contra Mulheres (2003-2016)

Cabe lembrar que, até o início dos anos 2000, as políticas brasileiras de enfrentamento da violência contra as mulheres eram centradas nas DEAMs e Casas Abrigo, privilegiando, por um lado, a responsabilização penal dos agressores na área da segurança pública e, por outro, uma política assistencialista, voltada para as mulheres em situação de risco de morte. Mas tratava-se de uma política fragmentada, sem um órgão federal com a autoridade e recursos necessários para executar uma política mais abrangente (Santos, 2015). Além disso, a legislação anterior relativa à violência doméstica tendia a torná-la uma ocorrência trivial, colocando-a na categoria de crimes menores com penas banais para os agressores (Barsted, 2006, 2016). Era, pois, preciso criminalizar a violência doméstica, criando novos tribunais com novos atributos e aumentar as sentenças, além de proteger as vítimas de abuso e fornecer assistência a elas e seus filhos, inclusive através da reabilitação dos agressores.

Com tal proposta em mente, em 2002, um grupo de feministas do campo do direito se articulou para avaliar projetos de lei pertinentes à questão tramitando no Congresso Nacional, bem como para analisar a legislação sobre violência doméstica vigente em outros países, particularmente da América Latina, tendo em vista uma adequação às estipulações da Convenção de Belém do Pará e outras convenções internacionais sancioandas pela ONU. Dessa articulação nasceu um consórcio de organizações não governamentais e operadoras do direito feministas, que formulou uma primeira proposta de projeto de lei voltado para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra mulheres. Essa proposta foi apresentada primeiro à Bancada Feminina no Congresso e, posteriormente, à Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Ali, a proposta passou por revisões por um grupo interministerial antes de ser apresentada para a aprovação da Presidência da República, que a enviou ao Congresso, em 2004, em regime de urgência (Santos, 2017).

Entretanto, passaram-se dois anos com a proposta original sofrendo modificações, não aceitas pelos movimentos feministas, sendo então reformulada e discutida em audiências públicas em diferentes estados, contando inclusive com depoimentos de mulheres vítimas de violência doméstica (Santos, 2017). Desse processo se formulou um substituto ao projeto de lei original, que foi aprovado pelo Congresso e, em julho de 2006, pelo Senado Federal. Por fim, em 7 de agosto de 2006 a proposta foi sancionada pelo Presidente Lula como Lei nº 11.340, ficando conhecida como Lei Maria da Penha em homenagem à Professora Maria de Penha Fernandes (Presidencia, 2006).

A referida Lei entrou em vigor em setembro do mesmo ano, trazendo avanços significativos na repressão à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Trata-se, de fato, de um pacote legislativo inovador e abrangente inspirado em convenções internacionais e em perspectivas feministas em relação à violência contra a mulher e meios de enfrentá-la e preveni-la. A Lei Maria da Penha amplia o conceito de violência reconhecendo suas diferentes formas, como violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Também amplia o conceito de família, reconhecendo como tal também as uniões de pessoas do mesmo sexo. Além disso, define não apenas medidas punitivas contra os agressores, mas também medidas de proteção e assistência na atenção às vítimas, além de importantes medidas preventivas.

Em especial, a Lei Maria da Penha permite o afastamento imediato do agressor da unidade doméstica e garante a permanência da mulher no seu ambiente familiar, comunitário e de trabalho, determinando também a criação de juizados especializados em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal (Brasília), com competência cível e criminal. Estabelece, também, a necessidade de uma estreita colaboração entre os juizados e as autoridades policiais, bem como com outras agências incluídas na rede de serviços, a saber: abrigos para mulheres em situação de risco de morte, centros de referência, centros de saúde, agências de emprego, defensoria pública e promotoria, definindo funções e tarefas específicas para cada uma das agências. Estabelece, assim, a integração operacional entre o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação (Sardenberg, 2016). Além disso, altera também o código de processo penal para que o juiz possa decretar a prisão preventiva do agressor quando a integridade física ou moral da mulher estiver ameaçada, possibilitando a prisão em flagrante e aumentando a pena do crime de violência doméstica de três meses para três anos (Tavares, 2011).

A Lei Maria da Penha estabelece ainda a necessidade de medidas preventivas e educativas, incluindo a promoção de estudos e pesquisas de monitoramento e avaliação da eficácia dessas medidas; a implementação de programas em todos os níveis com o objetivo de erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres; e campanhas educacionais com foco em direitos humanos, gênero e equidade racial e na nova legislação, entre outras questões relacionadas (Sardenberg, 2016).

Segundo a análise elaborada pela Secretaria Especial quando da sua aprovação, para uma efetiva implementação dessa Lei, seria fundamental a formação de duas redes: 1) uma rede de apoio ao enfrentamento da violência contra mulheres, que incluiria instituições e serviços governamentais e não-governamentais e a comunidade em geral, com destaque para os movimentos feministas e de mulheres e; 2) uma rede de atendimento constituída por diferentes serviços e ações que deveriam ser bem articuladas e integradas, com ênfase nos serviços de saúde, segurança pública, acesso à justiça, assistência social e educação (Santos, 2015).

Nesse sentido, a Secretaria Especial, então já sob a direção da Ministra Nilcea Freire, estabeleceu medidas para o reforço dos órgãos e agências envolvidas, atualizando as normas técnicas para as DEAMs e DDMs e para a rede pública de saúde, promovendo também a criação de centros de referência e casas abrigo e incentivando a criação de grupos e núcleos voltados para o enfrentamento da violência contra mulheres nas defensorias públicas e promotorias. Ademais, para assegurar a implementação do novo pacote legislativo, foi formulado um Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra a Mulher, que foi negociado com os governos estaudais, incluindo cláusulas relativas a: 1) garantias para a implementação e aplicação do PGL no Estado; 2) ampliação e fortalecimento das redes de serviços para mulheres em situação de violência; 3) garantia de políticas de segurança e acesso à justiça; 4) garantia do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos e combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; e 5) garantia da autonomia das mulheres em situação de violência e ampliação de seus direitos (Campos, 2015).

Em 2005, antes mesmo da Lei Maria da Penha ser aprovada, o Governo Federal já havia criado a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, voltada para acolher e orientar mulheres em situação de violência. Em tempo, essa Central se tornou não apenas uma “porta de entrada para os serviços ofertados pelo Estado”, como também uma importante fonte de dados “com informações para o estudo e análise do fenômeno da violência contra as mulheres no Brasil e assim subsidiar o aprimoramento e formulação das políticas públicas na área” (Bonetti, 2016: 147).

Foi também em 2006, antes da aprovação da Lei Maria da Penha, que a política nacional de acolhimento de mulheres em situação de violência foi formulada, tornando os abrigos um serviço essencial na rede de atendimento. Para tanto, foi elaborado um Termo de Referência, com diretrizes específicas para a criação e operação de casas de abrigo (SPM, 2006). Após a sanção do nova lei, porém, tornou-se necessária uma revisãodessas diretrizes, resultando na publicação das Diretrizes Nacionais de Abrigamento às Mulheres em Situação de Violência, já no primeiro mandato da Presidenta Dilma Rousseff (Brasil, 2010).

Essas iniciativas passaram a fazer parte de um projeto mais amplo de políticas para mulheres, pautado no diálogo e participação das pessoas mais interessadas – as mulheres do Brasil. Para tanto, conforme mencionado anteriormente, o Governo Federal convocou a I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (I CNPM), um processo que envolveu mais de 200.000 mulheres de todo o território nacional, por meio de conferências municipais, regionais e estaduais e a eleição de delegadas, a cada nível, para participação na formulação do I Plano Nacional de Políticas para Mulheres (I PNPM). Seguiram-se a II CNPM (2007), III CNPM (2010) e IV CNPM (2015), as duas últimas já durante o Governo Dilma Rousseff, todas sempre voltadas para a avaliação e ampliação dos Planos em curso (Sardenberg, 2017).

As recomendações contidas na Lei Maria da Penha foram ratificadas pelo II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, formulado em 2007, particularmente no seu capítulo 4, voltado para o enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres. Incluem-se aí, questões relativas à implementação da nova lei e demais normas jurídicas no âmbito nacional e internacional, como também a ampliação e qualificação da rede de proteção às mulheres em situação de violência (Brasil, 2008; Sardenberg, 2015).

Apesar da sua importância, a implementação da Lei Maria da Penha é uma questão complexa, principalmente por se tratar de uma lei federal, que envolve vários níveis de governo (municipal, estadual e federal), esferas distintas (Judiciário e Executivo) e órgãos de diferentes agências e ministérios. Ademais, requer, também, processos de monitoramento periódicos, para as devidas avaliações e correções necessárias.

Nessa perspectiva, a Secretaria acompanhou de perto as deliberações do Supremo Tribunal de Justiça e outras cortes superiores sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, garantindo a aplicabilidade da nova lei (Nunes, 2016; Cruz, 2016). No mesmo sentido, em 2007, foi lançado um edital com vistas à organização de consórcios para monitorar a implementação da nova lei. O Observatório de Monitoramento da Aplicação da Lei Maria da Penha - OBSERVE, o consórcio selecionado, reuniu 12 organizações e núcleos de estudo feministas, formulando metodologia específica e realizando pesquisas de âmbito nacional. Elas revelaram a precariedade dos equipamentos existentes e a relativa falta de preparo das equipes envolvidas, tecendo recomendações para os necessários ajustes (Gomes, 2009; Sardenberg, 2010; Sardenberg, 2010; Pasinato, 2011; Sardenberg, 2016).

Por meio de convênio com o Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq, a Secretaria Especial também apoiou pesquisas de opinião, promovendo ainda, por meio do Programa “Mulher e Ciência”, o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, o edital de apoio a pesquisas no campo dos estudos de gênero, mulheres e feminismos, e os Encontros Nacionais, Pensando Gênero e Ciências, iniciativas até então nunca antes promovidas pelo Governo Federal. Dentre os temas trabalhados, ganhou destaque a questão da violência contra mulheres, trazendo subsídios importantes para análise e revisão das políticas e programas pertinentes sendo implementados (Brasil, 2010).

Os resultados de estudos e pesquisas dessa ordem levaram à criação, em 2012, de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra as Mulheres, combinando membros do Senado e Câmara Federal. Com foco em informações e análises sobre o período 2004-2011, a Comissão reuniu dados e ouviu especialistas, pesquisadoras, profissionais do direito e representantes de agências governamentais de todo o país sobre a violência contra a mulher nos diferentes estados, assim como sobre as deficiências, desafios e avanços alcançados no combate a esse sério problema social (Campos, 2015; Senado, 2013).

Tal como observado em diferentes estudos (Pasinato, 2011; Santos, 2015), também o Relatório Final da Comissão verificou que a rede de serviços oferecia um atendimento deficitário, marcado tanto pela falta de coordenação inter-agências, quanto pela falta de profissionais qualificados. Constatou, ainda, que essa rede se concentrava nas principais cidades e regiões, não chegando a todas as mulheres, particularmente as do campo e das pequenas cidades (Campos, 2015; Senado, 2013).

Em 13 de março 2013, ciente desses resultados e, assim, das limitações e problemas encontrados na implementação da Lei Maria de Penha e de programas afins, a Presidenta Dilma Rousseff lançou o Programa “Mulher, Viver sem Violência” – o “MVSV”, coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, então sob a direção da Ministra Eleonora Menicucci. O referido Programa teve como finalidade “integrar e ampliar os serviços públicos direcionados às mulheres em situação de violência, através da articulação dos atendimentos especializados no âmbito de políticas setoriais, a exemplo da saúde, da justiça, da segurança pública, da assistência social e geração de renda”. A iniciativa foi transformada em Programa de Governo por meio .do Decreto nº. 8.086, de 30 de agosto de 2013, buscando-se a adesão das diferentes unidades da União (SPM, 2013).

Para alcançar esses objetivos, o Governo Federal destinou um orçamento de R$ 365 milhões a esse Programa, estruturando-o em seis eixos de ação, a saber: a) Implementação da Casa da Mulher Brasileira; b) Ampliação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180; c) Organização e humanização do atendimento às vítimas de violência sexual; d) Implantação e Manutenção dos Centros de Atendimento às Mulheres nas regiões de fronteira seca; e) Campanhas continuadas de conscientização e; f) Unidades Móveis para atendimento a mulheres em situação de violência no campo e na floresta.

De todas essas ações, a Implementação da Casa da Mulher Brasileira foi a principal, recebendo a maior parte das atenções e do orçamento. A Casa foi apresentada como um `espaço público' concentrando os diferentes serviços para uma assistência integrada e humanizada às mulheres, dentre os quais se incluem: Recepção, Acolhimento e Triagem; Apoio Psicossocial; Delegacia Especializada; Juizado Especializado em Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres; Promotoria Especializada; Defensoria Pública; Serviço de Promoção de Autonomia Econômica; Espaço de cuidado das crianças – Brinquedoteca; Alojamento de Passagem e Central de Transportes.

Segundo a ex-ministra Eleonora Menicucci (2018), a Casa da Mulher Brasileira revolucionou os modelos existentes de enfrentamento da violência contra a mulher, na medida em que procurou integrar, amplia e articular a máquina pública voltada para as mulheres em situação de violência. Ao concentrar os diferentes serviços em um único espaço, facilitaria o acesso das mulheres a eles, estimulando também o intercâmbio entre as diferentes agências envolvidas, evitando a duplicação de ações e procedimentos e oferecendo, assim, uma assistência mais articulada às mulheres em situação de violência (SPM, 2014).

A Presidenta Dilma investiu na construção desses centros, entregando três unidades prontas --em Campo Grande, Curitiba e no Distrito Federal-- e garantindo os recursos para um ano de operação de cada uma. Inaugurada em janeiro de 2015, a Casa da Mulher Brasileira, na cidade de Campo Grande, no Mato Grosso, registrou, em dois anos e três meses (de 03/fev./2015 à 30/abril/2017) de funcionamento, o atendimento a 25.612 mulheres e a realização de 131.141 procedimentos, incluindo “apoio psicossocial, boletins de ocorrência, prisões, medidas protetivas, audiências de custódia, orientações jurídicas, visitas domiciliares, encaminhamentos à rede de atendimento e ao mercado de trabalho, entre outros” (Berro, 2017).

Outra ação de grande relevância do MVSV foi a ampliação do Ligue 180, a Central de Atendimento a Mulher, para mais 13 países --França, Estados Unidos, Inglaterra, Noruega, Guiana Francesa, Argentina, Uruguai, Paraguai, Holanda, Suíça, Venezuela, Bélgica e Luxemburgo-- além do atendimento existente a mulheres residentes na Espanha, Itália e Portugal. Com a ampliação, esse serviço passou a oferecer um primeiro atendimento para casos de violência sofridos por brasileiras nos países citados, nos quais já se registraram denúncias, informando sobre os encaminhamentos pertinentes.

Cabe lembrar que, em 2003, após a criação da Secretaria Especial, foi sancionada a Lei no.10.778, que estabeleceu a necessidade de “notificação compulsória”, obrigando os serviços de saúde públicos e privados a notificar casos suspeitos e confirmados de qualquer tipo de violência contra a mulher (Presidencia, 2003)Brasil. Lei 10.778 de 24 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/2003/L10.778.htm. O eixo do MVSV, voltado para a organização e humanização do atendimento a mulheres vítimas de violência sexual, reforçou as normas técnicas existentes, estabelecendo novas diretrizes para a integração dos serviços de segurança pública e de saúde, com vistas a evitar que as pessoas que sofreram violência sejam submetidas a vários procedimentos e, assim, procura reduzir a sua exposição. Buscou-se uniformizar esses serviços, com oferta da contracepção de emergência e aborto, nos casos previstos em lei.

Já o eixo de ampliação dos Centros de Atendimento às Mulheres nas Regiões de Fronteiras Secas procurou responder às necessidades específicas dessas regiões, reforçando o atendimento a questões de migração e tráfico de mulheres nos municípios fronteiriços. Por sua vez, dentro do Programa MVSV, as unidades móveis, constituídas por ônibus e barcos especialmente adaptados para levarem serviços especializados da Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência ao campo, floresta e águas, estenderam o atendimento para mulheres antes desassistidas.

Ao lado dessas ações, a Secretaria também se empenhou na formulação e aprovação da `Lei do Feminicídio', sancionada pela Presidente Dilma Roussef em março de 2015. Respondendo, em particular, à análise dos dados sobre o Mapa da Violência discutido anteriormente, essa lei alterou o Código Penal brasileiro de modo a redefinir o “feminicídio" como um tipo de homicídio qualificado. Ele está agora incluído na lista de “crimes hediondos" - isto é, entre aqueles que são considerados extremamente graves e que merecem sentenças mais severas, sem possibilidade de fiança ou de redução de sentenças. De acordo com a nova lei, a violência doméstica contra as mulheres é agora classificada como “qualificatória do crime", com sentenças até duas vezes e meia mais longas do que as dos homicídios “simples" de mulheres (Sardenberg, 2017).

Note-se que essa mudança representou um importante avanço na luta contra a violência baseada em gênero, resultante do trabalho dos mecanismos do “feminismo de Estado", em diálogo com os movimentos feministas e de mulheres. A pressão exercida por esses movimentos também trouxe respostas relevantes por parte do Ministério da Educação durante o último ano da presidência de Dilma Rousseff. No início de 2016, o Exame Nacional do Ensino Médio -ENEM não só incluiu uma pergunta citando Simone de Beauvoir, como teve como tema de redação “A Persistência da Violência Contra as Mulheres na Sociedade", exigindo que, na época, mais de cinco milhões de jovens que fizeram as provas refletissem sobre esse grave problema nacional (Sardenberg, 2017).

Pode-se dizer que o tema a ser desenvolvido por jovens na prova do ENEM se enquadrou também no eixo pertinente às “campanhas continuadas de conscientização” do Programa Mulher Viver Sem Violência, eixo no qual se incluíram os programas envolvendo a discussão de gênero e sexualidade nas escolas, objeto da ira fundamentalista dos defensores da `escola sem partido'. Esses grupos, aliados daqueles que trabalharam pelo impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, têm encontrado agora um terreno fértil para o desmonte das políticas voltadas para a questão de gênero, promovendo um grande retrocesso na políticas públicas de enfrentamento da violência contra mulheres no país (Castro, 2018).

O Golpe de 2016 e a Desconstrução das Políticas Públicas de Combate à Violência Contra Mulheres

É difícil pontuar com precisão quando e como foi deslanchado o processo que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Alguns historiadores e historiadoras situam o início nas “jornadas de junho” – ou seja, nos protestos iniciados com o Movimento Passe Livre (MPL), em São Paulo, em junho de 2013 (Mattos, 2016). Argumenta Kátia (Baggio, 2016: 289) que, embora esse movimento não tenha nenhuma relação com a “trama golpista”, as “jornadas de junho” abriram as comportas para que grupos de direita, incentivados pela “grande mídia liberal-conservadora e antipetista” dessem início a “um intenso processo de desgaste e desestabilização do governo de Dilma Rousseff”.

Para Rodrigo Almeida (2016), que foi assessor de imprensa da Presidenta, o processo de impeachment propriamente dito começado em 30 de outubro de 2014, quatro dias depois de constatada a vitória da Presidenta Dilma, quando o PSDB deu entrada com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral – TSE, solicitando a criação de uma comissão para investigar o processo eleitoral. Acrescente-se ainda que, na mesma época, o Senador Aécio Neves, do PSDB e segundo colocado, questionando esse resultado, declarou que a Presidenta eleita não conseguiria governar, pois ele bloquearia todos os projetos e propostas do governo. Isso, de fato, aconteceu, mas sob o comando de Eduardo Cunha (PMDB), eleito Presidente da Câmara Federal a contragosto da Presidenta, indo de aliado a inimigo.

Há de se considerar, também, as tramas sendo tecidas por membros do Congresso e outros agentes envolvidos em esquemas ilícitos investigados pela chamada Operação Lava-Jato. Tal como se depreende da conversa entre o Senador Romero Jucá (PMDB) e Sérgio Machado, ex-diretor da Transpetro, que gravou a referida conversa entre os dois na qual Jucá afirma “com Dilma não dá”, que é “preciso botar o Michel num grande acordo nacional”, com “o Supremo e com tudo” (Valente, 2016). Sem esquecer, é claro, que o Vice Presidente, Michel Temer, além de ter mais de 20 anos de Congresso e de ter sido Presidente do PMDB, tendo força bastante sobre o bloco parlamentar conhecido como “Centrão” (Alencastro, 2016), já havia ameaçado a Presidenta em carta pessoal tornada pública, na qual se autodenominava como “vice decorativo”, se queixando de que a Presidenta não confiava nele nem no PMDB (e hoje sabemos, com razão). Segundo Ana Flávia (Ramos, 2016: 281) e Gláucia Fraccaro, essa carta é um dos “vestígios deixados sobre o golpe”: “Seu registro de “insatisfação” soaria mais como uma ameaça de conspiração do que a denúncia de uma injustiça. Em outras palavras, o vice declarava que daria o golpe, e que a culpa seria da própria presidenta por nele não confiar”.

E há ainda que destacar a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) que, adotando uma “postura ativista”, cujo papel na deposição da Presidenta foi crucial, contou também com o apoio das “elites políticas, econômicas e sociais nacionais”, para viabilizar, embora não abertamente, “uma agenda política que fora seguidamente derrotada” nas disputas eleitorais (Fernandes, 2017). Em outras palavras, o Supremo não só legitimou o golpe, como também o programa do PSDB, derrotado nas urnas, mas implementado pelo Governo Temer.

Provavelmente, todos esses fatores contribuíram para o afastamento e eventual impeachment da Presidenta, ou “golpeachment”, nas considerações de Jessé Souza (2017), haja vista que as acusações contra ela não tinham fundamento. Foi, portanto, um golpe jurídico-midiático-parlamentar, deslanchado nos moldes de uma “dramaturgia clássica” (Vidal, 2016), de sorte que, em 31 de agosto de 2016, a presidenta da República foi afastada do cargo,

[...] em uma votação no Congresso que se tornaria um dos episódios mais sombrios vividos por aquela Casa. Transmitido pela mídia para todo o país, as imagens de centenas de deputados destilando o seu ódio à presidenta, em nome de um discurso pautado em “Deus” e na “Família”, demonstravam de forma monstruosa a ânsia do Poder Legislativo de retirar a presidenta do lugar de chefe de mandatária maior da Nação.
(Leitao, 2018: 52).

A evocação da `família' naquele momento, dá mostras que a questão de gênero, ainda pouco ventilada nas análises do golpe, teve um papel fundamental em todo o processo (Rubim, 2018). Pode-se mesmo dizer que esse golpe se caracterizou como uma instância de violência de gênero contra a mulher Dilma Rousseff, a começar pelos discursos de desqualificação da sua pessoa, propagados pela mídia (Rosario, 2017), que acompanharam sua trajetória [...] desde o momento em que seu nome começou a ser veiculado como possível candidata à presidência” (Araujo, 2018: 34). Passou-se então a caracterizá-la como uma simples `técnica', ou mesmo como um `poste', desqualificando-a como pessoa `política' por nunca ter exercido cargo eletivo, bem como por sua suposta falta de `jogo de cintura' para lidar com as lideranças políticas que a procuravam na condição de ministra do governo de seu antecessor.

Argumenta Céli Pinto (2018) (26) que essa crítica à Dilma Rousseff provavelmente se baseou em “[...] um alargado conceito do que é ser político, que inclui troca de favores e favorecimentos entre agentes públicos e entre agentes públicos e privados”. Mas, como destaca a mesma autora mais adiante, por sua própria trajetória política como militante de esquerda presa e torturada, Dilma Rousseff [...] “tinha uma perspectiva mais política e esquerdizante que o próprio Lula” (Pinto, 2018: 29).

A desqualificação da Presidenta também a caracterizou como `não carismática' e como alguém “[...] cujos discursos ultrapassavam o vazio do apelo e do conteúdo e eram sempre objeto de chacota e da falta dessa «qualidade» para governar” – chegando até mesmo a ser apresentada como `mulher burra' que só `fala besteira' (Araujo, 2018: 38). Sem esquecer as instâncias de violência escancarada de que foi alvo, seja por xingamentos públicos como o acontecido na abertura da Copa do Mundo de 2014, no Rio de Janeiro, seja pelas ofensas de cunho sexual expostas em adesivos e nas redes sociais (Leitao, 2018). Como afirmam Ana Flávia (Ramos, 2016:282) e Gláucia Fraccaro, foi um golpe misógino na democracia: “Nem mesmo nos momentos de maior rejeição popular foram produzidos adesivos para carro com a figura de Fernando Collor em posição proctológica”.

Concordo com Céli Pinto (2018) (30) em que tudo isso se constitui como “[...] parâmetros do nível de educação cívica e de preconceito contra a mulher no país, caracterizando-se como mais uma instância do que Flávia Biroli (2018) chama de “violência política contra mulheres”, ou seja, trata-se de mais uma das diferentes dimensões de como a violência de gênero contra mulheres se manifesta na sociedade brasileira.

De um modo geral, as medidas tomadas pelo Governo Temer, desde o início, têm também uma perspectiva de gênero, tendo um impacto bastante negativo no que diz respeito às mulheres. A reforma trabalhista, a da Previdência, os cortes no Programa Bolsa Família, dentre outras medidas neoliberais impostas pelo Presidente Temer e o Congresso que lhe dá apoio, vem com recorte de gênero, impactando com maior força sobre as mulheres (Farias, 2018). São pertinentes, portanto, as considerações da ex-Ministra Eleonora (Menicucci, 2016) quando declara:

Os articuladores desse golpe em vigência são aparentemente ocultos, mas quem são eles? São homens brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram como estruturantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça e classe.

Desmontam as políticas sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminam direitos civis, sociais e trabalhistas que garantem a cidadania e privatizam com a maior velocidade já vista todos os bens públicos.

A relação entre o patriarcado e o ultra liberalismo econômico se mostra com muito vigor no atual contexto golpista fascista, altamente explicitado pelo fundamentalismo do Congresso Nacional em especial da Câmara dos Deputados.

É também o que expressa a Deputada Maria Rosário (PT), referindo-se ao ataque aos direitos das mulheres no Congresso Nacional, não só impedindo avanços, como também destruindo o que já se conquistara:

Dentro do Congresso Nacional os mais atrozes ataques aos direitos das mulheres tramitam, e o inimaginável sempre tem lugar quando o objetivo é calar nossas vozes e guiar nossos corpos. Um dos melhores exemplos disso é a conversão de uma Proposta de Emenda Constitucional que visava assegurar maior tempo de licença maternidade para mães de bebês prematuros em um texto que pode impedir o aborto em caso de estupro, risco da vida da mãe ou anencefalia, e até mesmo a pílula do dia seguinte
(PT na Câmara, 2017).

Há de observar que, sob pressão das forças de oposição ao seu governo, a Presidenta procedeu a uma reforma ministerial, dando origem à combinação das Secretarias de Políticas para Mulheres, Promoção da Igualdade Racial, Juventude e dos Direitos Humanos sob um novo Ministério, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, que ficou sob a direção da Ministra Nilma Lino. No entanto, a Secretaria de Políticas para Mulheres, ali abrigada, continuou a ter bastante autonomia e a administrar um orçamento considerável para levar adiante as políticas e programas voltados para o enfrentamento da violência contra mulheres.

Já a reforma ministerial Por certo, o rebaixamento da Secretaria de Políticas para Mulheres de Ministério para um mero departamento do Ministério da Justiça e Cidadania, por Medida Provisória, logo de início, é indicativo da pouca importância --até mesmo do menosprezo-- dada às políticas para as mulheres no Governo Michel Temer. Seguidas vezes, aliás, o próprio Presidente Temer deu mostras do viés patriarcal que o guia, a exemplo do seu pronunciamento no Dia Internacional da Mulher em março de 2017, noticiado pelo Jornal El País, no qual às mulheres cabe quase que tão somente as preocupações com filhos, lar e `cuidar dos afazeres domésticos', sendo por ele caracterizadas como especialistas na flutuação dos preços nos supermercados (Marreiro, 2017).

Em 2018, para evitar repetir a sequência do que a mídia chamou de “gafes” cometidas no seu discurso do Dia Internacional da Mulher do ano anterior, Michel Temer reduziu sua fala a apenas dois minutos, fazendo questão de ressaltar que “apoia o movimento por equiparação salarial entre homens e mulheres” e, lembrando que, tal como já está inscrito na Constituição Federal, ambos são iguais em “direitos e deveres” (Uribe, 2018).

Note-se que em 2017, depois das `gafes', Michel Temer fez novas mudanças nos ministérios, criando a Secretaria Geral da Presidência e o Ministério dos Direitos Humanos e transferindo a Secretaria de Políticas para Mulheres do Ministério da Justiça para a Secretaria de Governo, ocupada pelo Deputado Carlos Marun (PMDB). Ou seja, por um lado, a Secretaria de Políticas para Mulheres ganhou mais status na estrutura ministerial, mas, por outro, acabou ficando sob a direção de um político tido como autoritário, conhecido em Brasília como “pitbull" do Presidente (Brasiliense, 2018).

Em julho de 2018, por meio de outra Medida Provisória, fez-se uma nova mudança da Secretaria, com sua transferência, junto com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, para o Ministério dos Direitos Humanos, comandado pelo Ministro Gustavo Rocha (Chagas, 2018). Essa mudança implicou em um novo rebaixamento, tal como denunciado em Nota Pública do CNDM, onde as conselheiras ressaltam que:

As diversas alterações organizacionais da Secretaria em curto espaço de tempo refletem, para nós, Conselheiras da Sociedade Civil no CNDM, negligência com a pasta que é competente por temas de extrema relevância para a sociedade brasileira, como a igualdade de gênero; o combate à violência sexual; a luta contra o feminicídio e a misoginia; a participação das mulheres na política; os direitos sexuais e reprodutivos e a inserção da mulher no mercado de trabalhoDivulgado no Facebook em 25 de junho de 2018: https://www.facebook.com/jeanete.mazzieiro/.

Há de se considerar não apenas a desagregação e rebaixamento, como também o drástico corte de orçamento, sobretudo do total destinado ao Programa Mulher Viver Sem Violência: de R$ 365 milhões, em 2016, para R$ 96 milhões em 2017, ou seja, um corte de quase 1/3 do valor anterior, com ameaças de mais cortes em 2018. Sem dúvida, tais fatores têm levado ao desmonte das políticas dos governos anteriores, conforme lamenta a Deputada Maria do Rosário:

O legado de Temer para as mulheres é um corte de verbas de políticas voltadas à promoção da igualdade de gênero que, de acordo com a previsão orçamentária de 2018, chegará a 80% em relação ao último ano de Dilma à frente da presidência. Medida que transforma as políticas de atendimento às mulheres em situação de violência, e de incentivo a autonomia em meros resquícios do que outrora foram (PT na Câmara, 2017).

Vale destacar que a construção das Casas da Mulher Brasileira, que figurava como um dos principais eixos do programa em questão, foi paralisada e mesmo aquelas três que foram entregues já prontas antes do golpe não se encontram em funcionamento. Tal como expressou em recente entrevista a ex-Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres nos governos de Lula e Dilma, Aparecida Gonçalves: “Não foram colocadas para funcionar porque não são prioridades para este governo. A política de enfrentamento à violência contra as mulheres é pauta secundária, está efetivamente sucateada” (Porem, 2017).

Com efeito, a da Casa da Mulher Brasileira de São Paulo sofreu não só o corte de verbas e da falta de interesse do Governo Federal, como também por parte do Prefeito João Dória (PSDB). O prédio onde deveria estar funcionando a Casa está pronto desde novembro de 2016, tendo custado perto de 7,6 milhões com financiamento federal, ainda não foi inaugurado (Pina, 2017). Tal situação deu origem ao surgimento do Movimento Mulheres Contra o Desmonte das Políticas de Enfrentamento à Violência, que tem denunciado também a extinção da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, substituída pela Coordenação de Políticas, além do corte de R$ 43,5 milhões feito no orçamento dos Centros de Defesa e Convivência da Mulher, e das ameaças de extinção dos Centros de Cidadania da Mulher e do Centro de Referência da Mulher (Ruy, 2017), antes operantes na cidade de São Paulo. Conforme denunciou a Conselheira Vera Soares:

O prefeito está aqui fazendo a mesma coisa que o presidente golpista em Brasília. Ele desmonta serviços sociais e direitos. O prefeito está diminuindo a atenção ao SUS e colocando a cidade à venda. Ele simplesmente fecha os serviços e ponto. Temos a Lei Maria da Penha e ele tem que manter a rede de atendimento prevista nesta lei
(Valery, 2017).

Cabe ressaltar que a rede de atendimento mencionada pela Conselheira está prejudicada não apenas em São Paulo, mas em todo o país, tal como avaliou a Articulação de Mulheres Brasileiras, AMB, destacando a importância dessas redes:

Para a efetiva aplicação da lei Maria da Penha e proteção das mulheres é preciso existir uma rede de serviços ampla, articulada, bem equipada, com profissionais qualificados e que tenham compreensão de que a violência de gênero tem características e aspectos muito particulares, que requerem uma intervenção especializada. Mas o que temos visto são serviços sucateados, com profissionais atuando em situação de precariedade, sem estrutura e sem suporte para uma intervenção que gere acolhimento e dignidade às mulheres. No último ano, a Rede de Serviços de Atendimento à Mulheres em Situação de Violência diminuiu em todo o país, concentrando-se cada vez mais nas capitais e nos serviços da Segurança Pública e da Justiça. Delegacias e Juizados não irão, sozinhos, modificar os padrões de relacionamento entre homens e mulheres. [...]Desde o golpe, constatamos que cada vez mais são reduzidos os recursos destinados aos programas nacionais e aos repasses aos governos estaduais e prefeituras. É preciso reafirmar e reforçar a importância dos Centros Especializados de Atendimento às Mulheres como espaços de referência para o trabalho continuado junto às mulheres, em paralelo às intervenções na área de Saúde, Justiça e Segurança
(AMB, 2017).

A bem da verdade, as Casas da Mulher Brasileira estão funcionando pela metade, como no caso de Campo Grande, ou totalmente paralisadas, ou mesmo nunca inauguradas, tal qual a de São Paulo. Ademais, outros serviços de fundamental importância para os programas de enfrentamento da violência contra mulheres no país encontram-se sucateados (Zurutuza, 2016). Esse é o caso do Ligue 180. Apesar da imensa demanda por esse serviço --um aumento de 52% de atendimentos de 2015 para 2016-- a Central de Atendimento à Mulher teve seu orçamento cortado em 2017 e nenhum recurso destinado para 2018, “ficando apenas com restos a pagar” (Menezes, 2018).

Também as Unidades Móveis, constituídas por ônibus e barcos para atendimento a mulheres em situação de violência no campo e na floresta, estão paradas, enferrujando, os centros de referência e as casas abrigo fechando, os serviços de atendimento a mulheres nas fronteiras secas sendo desativados, isto é, o Programa Mulher Viver Sem Violência está sendo amplamente prejudicado. Conforme explicitou Joana Chagas, Gerente de Projetos da ONU-Mulheres no Brasil, por ocasião de sua participação em evento sobre Violência de Gênero realizado em Campo Grande pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul: “O Brasil de 2018 enfrenta a insuficiência de investimentos financeiros para a implementação de leis e políticas substantivas de enfrentamento à violência contra as mulheres” (Galvao, 2018).

Para a Deputada Maria do Rosário, contudo, não se trata apenas de falta de financiamento, mas sobretudo de “descaso e falta de sensibilidade política e social” do Governo, descumprindo “normas nacionais e internacionais de garantia e proteção dos direitos humanos das mulheres, sobretudo a Lei Maria da Penha, do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher da OEA” (Farias, 2018).

Há de se observar, também, que além do descaso, opera no sucateamento e abandono de diferentes agências e órgãos da rede de atendimento, uma visão policialesca e conservadora de como se deve lidar com a questão da violência de gênero contra mulheres. Senão vejamos: foi anunciado um plano federal de combate à violência que prevê “[...] o pagamento de diárias a PMs e policiais da Força Nacional de Segurança que atuem, em dias de folga, em regiões com altos índices de violência doméstica” (Melo, 2016).

Ao lado dessa visão do Governo Federal de que o enfrentamento da violência de gênero é um “caso de polícia”, junta-se a do Judiciário de que a Lei Maria da Penha tem por objetivo defender a família, ao invés das mulheres. A exemplo da determinação da Ministra Carmen Lúcia do Supremo Tribunal Federal, que transformou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, instituídos pela Lei Maria da Penha, em “Juizados da Paz em Casa”. Como ressalta a AMB:

Essa tentativa pode parecer interessante numa visão inicial, mas ao analisarmos o projeto constatamos que é mais uma tentativa de silenciar as mulheres, justamente quando tentamos nomear e dar voz às nossas dores e sofrimentos. Enquanto estivermos sofrendo violência doméstica e familiar, não teremos paz em casa e nem nas ruas
(AMB, 2017).

Não por acaso, crescem os índices de feminicídios no país a avolumam-se processos no Judiciário, já que “o volume de processos é maior que a capacidade da Justiça de julgar responsáveis pelos crimes”, conforme aquilatou o estudo “O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha – 2018”. Segundo esse estudo, ao final de 2017, havia mais de 10,7 mil processos de feminicídio nos tribunais de Justiça para decidir. Eles compunham um ainda mais amplo de “violências diversas contra mulheres”: tem-se conta de que, em 2017, “tramitaram na Justiça Estadual 1.448.716 processos referentes à violência doméstica e familiar, o equivalente a, em média, 13,8 processos a cada mil brasileiras” (Galvao, 2018).

Considerações Finais

Neste artigo, procurei fazer um apanhado geral da construção das políticas e programas voltados para o combate e enfrentamento da violência de gênero contra mulheres no Brasil, desde a retomada dos movimentos feministas nos anos 1970, até os dias atuais. Já são passados quase 50 anos desde a retomada desses movimentos e, com eles, quase 50 anos de lutas para se construir políticas desse teor no país.

Como procurei demonstrar, os maiores avanços se deram a partir de 2003, com a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, com feministas que levaram à frente as demandas dos movimentos, logrando formular leis e políticas de alta qualidade no enfrentamento e combate à violência de gênero contra mulheres, a exemplo da Lei Maria da Penha, que hoje serve de modelo para outros países.

Em entrevista realizada em 2017 com o grupo Catarinas da UFSC, por ocasião do Seminário Internacional “Fazendo Gênero”, a ex-Ministra Eleonora Menicucci resumiu muito bem o conjunto desses avanços ao responder à pergunta que lhe foi feita sobre o seu legado como ministra. Tomo aqui a liberdade de reproduzir suas palavras:

O meu legado como ministra é uma continuação do legado da ministra Nilcéia (Freire) e da ministra Iriny (Lopes). Eu fiquei quase seis anos. A Nilcéia foi a mais longeva, por sete anos. No início do governo Lula, o primeiro legado que nós deixamos foi a implantação da Secretaria de Políticas para as Mulheres com status de Ministério. O meu legado específico foi criar uma alíquota própria no PPA – o Plano Plurianual, no orçamento da União, uma rubrica destinada às políticas de gênero. Nunca foi feito isso. Segundo, a transversalidade das políticas de gênero em todas as políticas do governo. Eu consegui uma proposta de criação de comitês de gênero em todos os ministérios, com portaria ministerial, com profissionais dos ministérios específicos para que eles monitorassem se as políticas tinham uma perspectiva de gênero: no Bolsa Família, o cartão está lá na mão das mulheres; no Minha Casa, Minha Vida, a titularidade; no Luz para todos, as mais de milhões de cisternas que fizeram com que a mulher tirasse a lata d`água da cabeça no Nordeste. O terceiro foi tornar o enfrentamento à violência, a rede de assistência às mulheres em situação de violência como política de estado com a lei Maria da Penha. E nós implementamos. Com o programa Mulheres Viver sem Violência, nós criamos as 27 casas da mulher brasileira, R$ 360 milhões, uma em cada capital em parceria com os governos de municípios – que a diretriz da Lei Maria da Penha é colocar no mesmo espaço físico todos os serviços previstos na legislação para atender as mulheres. Aí acaba com a via-crucis da mulher que vai na delegacia, vai na procuradoria, vai pegar um BO... Eu inaugurei três e deixei sete empenhadas. Só a de Campo Grande está funcionando. O programa de pró equidade de gênero e raça, que é introduzir a dimensão de gênero e raça nas empresas para melhorar as boas práticas de gênero e fazer com que as mulheres acendessem nas carreiras. Isso foi fundamental e ganhava prêmio. Além da PEC das trabalhadoras domésticas, que a presidenta assinou em 2013, que iguala os direitos das trabalhadoras à CLT, que hoje foi assassinada. Gênero e Ciência, que são dez edições de um programa que nós destinamos recursos para as escolas para promover a perspectiva de gênero nos currículos e redações e dissertações. Na saúde da mulher, eu só consegui avançar na melhoria e qualificação do serviço do aborto legal. A presidente sancionou a lei que garantiu atenção especial a mulheres em situação de aborto em todos os hospitais. O que significa isso? A contracepção de emergência até 72 horas, o hospital, seja ele qual for (do SUS, conveniado, particular, religioso, filantrópico...) tem que oferecer isso para a mulher. E esse foi o grande avanço
(Moser, 2017).

Argumentei ao longo deste artigo que o golpe de 2016 contra a Presidenta Dilma Rousseff e a tomada do poder pelo Vice-presidente Michel Temer representaram um grande golpe misógino contra as políticas para mulheres. Destaquei aqui, em especial, falas e cifras reveladoras do panorama de desmonte das políticas e equipamentos específicos, resultante das mudanças estruturais e os drásticos cortes de orçamento dos órgãos responsáveis.

Confesso que, como ativista feminista que tem participado dos movimentos e lutas em questão pela construção dessas políticas, é difícil assistir o desmonte em curso. Só posso concluir este artigo afirmando que espero não termos mais quase cinco décadas de lutas pela frente para reconstruirmos tudo que conquistamos antes do golpe de 2016. Precisamos, sim, avançar e não permitir que o retrocesso se instale em nosso país. Precisamos exigir respostas institucionais firmes em relação aos agressores, assim como mais políticas públicas acolhedoras para as vítimas - não a sua desconstrução.